Superman (2025) e seus feitos e defeitos, mercadológicos e artísticos
Um novo caminho para o mercado e para o gênero, mas...
Vi o Superman na quarta-feira mas fiz questão de separar dois dias pra pensar mais sobre o filme vez ou outra. Saí da sessão com um sentimento positivo, mas com algumas questões que precisava rever na minha cabeça. Me parecia um filme mais bem sucedido em questões mercadológicas do que artísticas, e esse texto é um pouco reflexo desse dilema. Eu acho que Superman tem muitos méritos. É um filme que apresenta um novo caminho para o gênero, que introduz todo um novo universo de possibilidades e com uma abordagem diferente, mostra que é possível fazer cinema de super-heróis sob um novo olhar. Mas ao mesmo tempo, ele repete alguns dos defeitos de outros filmes da Marvel e até da DC do Zack Snyder.
Peguemos como parâmetro comparativo o Homem-Aranha 2 do Sam Raimi. Em uma cena, vemos um escritório funcionando normalmente em Nova York, cada um ocupa sua função, cada trabalhador segue sua rotina. Um som começa a se intensificar, como se algo escalasse as paredes. Todos se aproximam da janela para ver o que acontece e descobrimos ser o Doutor Octopus, que quebra as janelas e leva todos ao desespero. Há toda uma construção bem cadenciada ali, de apresentar o espaço e os indivíduos e então o vilão que rompe com a normalidade. Se o Homem-Aranha é o herói que leva esperança, o Octopus é o vilão que causa temor.
Já no Superman de James Gunn, um kaiju gigante invade Metropolis e, em uma cena, dispara uma rajada de fogo que destrói as janelas de um andar lotado de trabalhadores. Ninguém ali tem um close-up, uma fala ou qualquer outra coisa. O Superman chega, se coloca entre o kaiju e as pessoas, pergunta se tá tudo bem e segue com a luta. Há uma diferença fundamental ali, que não se resume a uma cena ser bem construída e a outra ser apenas um breve momento sem muito o que aproveitar: as pessoas de Homem-Aranha realmente existem, sentimos o seu sentimento. No caso de Superman, sinto como se todos fossem NPCs esperando a ação acontecer.
O filme de James Gunn quer muito estabelecer seu herói como uma figura símbolo de esperança, e até o faz de maneira interessante em alguns momentos, mas muito aquém do próprio potencial. Quando o Superman cai nas ruas durante o primeiro embate com o vilão israelense controlado por um bilionário americano – bela sacada, mas não tão bem utilizada –, um imigrante chega para ajudá-lo, se preocupar com ele, mostrar que acredita em seus feitos e o apoia. Esse mesmo imigrante e trabalhador, entretanto, existe apenas para ser instrumentalizado como ferramenta dramática pouco depois, em uma cena que tira a própria dignidade do personagem, quando sua situação serve apenas para humanizar o próprio Superman.
Peguemos o Homem-Aranha 2 de novo como exemplo. Perto do clímax, o herói e o vilão se enfrentam em um vagão do metrô. O Aranha está desacordado, cai no chão do vagão sem máscara, e todos os cidadãos que ali estão o ajudam a se levantar e entregam sua máscara. Observam e comentam, atônitos, sobre como não é um super humano, mas um menino. “Não mais velho do que meu filho”, diz um dos indivíduos. Ali, o herói como símbolo de esperança é estabelecido de maneira exemplar: o sujeito que passa por todas as lutas diárias está arriscando a vida pelos demais, que reconhecem seu esforço e o auxiliam. Os novaiorquinos até dizem ao vilão: “se quiser levá-lo, vai ter que passar por cima de mim”.
A diferença entre esses dois filmes passa pelo contexto de seus tempos e também pela diferença de Sam Raimi e James Gunn como cineastas – ambos bons, mas vejo Raimi muito acima –, mas me interessa menos discutir isso no atual momento e mais no efeito prático disso. Na prática, a diferença é que Homem-Aranha 2 é constituído por cenas que constroem o personagem, suas relações pessoas e sua relação com o mundo. O Aranha existe em um contexto, em uma cidade palpável, enquanto o Super está em um mundo muito pouco tátil, que chega a ser dividido ao meio no clímax sem que haja muita preocupação em mostrar o impacto disso na vida das pessoas.
Isso se dá principalmente pela pressa em desenvolver a história. Salvo engano, a Variety noticiou que, antes de topar assumir o Superman, James Gunn tinha ressalvas por se tratar de um personagem “antiquado”, que pouco dialoga com o público de hoje, e o filme inteiro parece uma tentativa de encaixar nisso a fim de obter sucesso comercial. Assim como o Batman v Superman de Zack Snyder, o Superman de James Gunn parece construído de momentos, não de cenas, como vídeos que surgem no feed do TikTok e vamos assistindo em série sem criar muito laço com nenhum deles.
Superman começa com uma contextualização até interessante. Chegamos no meio da ação, o herói acaba de perder sua primeira luta. A ideia é que sejamos jogados no meio da história como quem compra um quadrinho aleatoriamente na banca de jornal e pega a edição 26 de uma série que já corre há muito tempo. A cena segue, conhecemos a Fortaleza da Solidão, Krypto, os robôs e por aí vai. Só que após essa boa cena de introdução, quase todo o filme se desenvolve a partir de momentos fugazes demais para que haja qualquer impacto dramático real.Conhecemos Luthor, Lois, Jimmy Olsen, o chefe do jornal, a namorada do vilão, os outros heróis… Tudo em um piscar de olhos, em momentos que às vezes acumulam dezenas de cortes em alguns segundos. Tudo é rápido e nem sempre bem filmado – como notou um amigo, Victor Castro, a conversa entre Jonathan e Clark Kent é uma das menos inspiradas do filme, e a câmera já parece ansiosa para saltar para o próximo momento.
As coisas acontecem muito rápido em Superman. E é curioso notar como não parece uma escolha acidental, mas de proposta mesmo. É, por exemplo, um filme que se conta todo a partir de telas. Os celulares e mensagens de texto, as telas da Fortaleza, as televisões do Planeta Diário, da casa dos Kent e da casa de Clark, as telas das ferramentas do Senhor Incrível, as telas pelas quais Lex Luthor comanda seus subordinados e máquinas. Gera um sentimento de ser um herói “antiquado” jogado no mundo de hoje, cujo heroísmo não encontra muito espaço pelas mudanças da sociedade. Mas até nisso, coisas boas não são tão aproveitadas.
Imagino que Gunn tinha como objetivo fazer de Superman um filme que versa sobre a crise na mídia, as fake news, a cultura do cancelamento, mas tudo acaba tão jogado que pouco de debate podemos desenvolver a partir do que o filme apresenta. Soa como um emaranhado de ideias que não pegam tração. Aliás, é nítido que Gunn tentou levar seu próprio cancelamento ao filme como tema, com o cancelado da vez sendo o Superman, mas a ideia não encontra espaço nem respiro para se desenvolver. O que é proposto além da analogia?
Sobre o Superman como uma figura meio deslocada do universo, gosto de pensar, por exemplo, que o mesmo personagem deste filme, se inserido em outra produção, de outro momento histórico, seria um filme mais semelhante ao Superman Returns de Bryan Singer. Mas aqui, há a necessidade de se justificar para a sociedade e prestar contas a todo momento, algo com o qual o herói claramente não concorda. Esse aspecto vejo como algo interessante no filme: o herói que o mundo não quer que exista, que precisa justificar até mesmo quando salva vidas. Mas para que isso funcionasse plenamente, seria necessário que os momentos de heroísmo realmente rompessem com a pressa que domina o filme, seria preciso que o Superman tivesse tempo de salvar o dia e ser celebrado pelo povo.
Isso pesa inclusive na questão política que o filme aborda. Há uma óbvia analogia ao genocídio palestino, com direito a um Benjamin Netanyahu quase tão macabro quanto o original e tudo mais. A cena em que os heróis impedem o genocídio, inclusive, talvez seja a mais forte do filme, justamente porque há tempo para se pensar o que mostrar e como mostrar. A criança levanta uma bandeira com o símbolo do Superman e olha para os céus à procura do herói, enquanto um soldado da IDF fictícia aponta uma arma para ela. O filme de fato reconhece que há esse genocídio e coloca o heroísmo metahumano como solução possível na fantasia, mas no fim das contas, soa como mais uma boa ideia perdida no meio de um filme que apresenta dilemas demais.
Como um todo, Superman acaba sendo um filme um tanto quanto incoerente. O mesmo herói que salva o esquilo de um ataque não parece muito preocupado ao ver a cidade sendo, literalmente, partida ao meio, com dezenas de prédios sendo destruídos – o que certamente causaria mais danos do que a morte de um único bichinho. Enquanto no filme o herói é sacrificado por agir em um tempo no qual as estruturas da sociedade criam mais amarras do que caminhos, impedindo que questões tão óbvias quanto o genocídio palestino não sejam resolvidas, o filme de James Gunn parece ser bem sucedido apenas em criar possibilidades mercadológicas para o gênero.
Não acho o Superman de James Gunn ruim, mas retorno ao começo do texto: no fim, seus feitos são mais mercadológicos do que artísticos, e no fim do dia, Superman continua sendo um filme, e não uma proposta econômica. O esforço para que o herói pareça uma figura do povo é pueril e sempre instrumentalizado. O humano que ama o Super, mas que é humanizado apenas para ser ponte para o drama do próprio protagonista, as pessoas nos prédios desesperadas que só estão lá para responder uma mensagem de conforto do kryptoniano, e por aí vai.