Sorria (2022) se aceita como obra de terror e faz do gênero um destino incontornável
Filme de Parker Flinn subverte ideia dominante no cinema de trauma contemporâneo
Desde a época de A Bruxa, a grande maioria do produzido por Hollywood em termos de terror tem o trauma como elemento basilar. São filmes nos quais o trauma é o gatilho para que a magia aconteça e o suspense seja convertido em terror. É o portal que traz ao mundo físico os demônios, monstros e fantasmas da fantasia. Isso não é necessariamente ruim, mas muitas vezes é um mecanismo cínico de cineastas covardes que querem flertar com o terror sem ter a coragem de mergulhar a narrativa no gênero. Querem o reconhecimento do “cinema sério”, do drama “maduro”.
E é justamente sobre essa divisão entre o trauma real e o pesadelo fantástico que Sorria (2022) constrói suas bases. A psicóloga que testemunha um suicídio e passa a ser perseguida pelo demônio (ou entidade) dos sorrisos. Desde o começo já sabemos que a situação é real, assim como a Rose aos poucos também entende. Só que ninguém acredita nela e não há muito o que fazer para provar. O filme tem uma estrutura bem similar a do Chamado do Gore Verbinski, com a diferença de que a fita da Samara trazia efeitos mais rápidos em suas vítimas, permitindo à Rachel convencer o ex-namorado de que a maldição é real e assim ter amparo para lidar com a situação.
Aqui, há um cuidado geral para que Rose não se sinta tratada como louca, mas é algo inevitável em virtude do contexto. Afinal, só ela vê a maldição, só ela vê o demônio. A protagonista sabe o que é real, mas não tem recursos para provar isso para os outros. Só que o filme não se sustenta só por isso. Sorria apresenta duas soluções possíveis: uma solução digna do cinema de horror e uma digna dos filmes covardes da leva mais recente do gênero. Rose descobre que a única maneira de encerrar a maldição é tirando uma vida e criando o trauma em outra pessoa — e portanto, entrando de cabeça no terror. O que ela escolhe, em vez disso, é enfrentar o próprio trauma em uma busca pelo expurgo dos demônios pessoais (o suicídio da mãe) — a solução covarde, que resolve sua narrativa a partir do real, e não do fantástico.
No fim, o terror se manifesta e continua vivo porque Rose escolhe o expurgo pessoal e, em vez de ser recompensada, é punida por sua decisão. A única forma de se exorcizar um demônio de um filme de terror é aceitando o gênero, é abraçando a violência e a escatologia, a estilização. É a recusa da racionalização e do moralismo. Os demônios não existem só na mente de Rose, eles de fato não são uma mera projeção de seus traumas. Os monstros são corpos reais que vão chegar e destroçá-la.
Por mais que, no começo do filme, Parker Finn filme Sorria de maneira que essa presença demoníaca pareça algo que sustenta certa distancia, que existe muito mais no imaginário de Rose do que no real — os jogos de câmera revelando pessoas nos cantos, presenças que atravessam a personagem e por aí vai —, no fim do dia, tudo é real, tudo se manifesta e consuma o pesadelo. A maldição persiste porque Rose se recusa a encarar a realidade dela e, assim, o terror triunfa por Parker Finn torná-lo incontornável.
Por mais que não haja nada exatamente novo e visualmente inovador em Sorria, o terror de Parker Flinn não só executa muito bem o que propõe, como também opera como contraponto ao terror de trauma costumeiro, que recusa a fantasia e os demônios em prol de uma aspiração de realismo bastante estéril e um tanto quanto infantil. O trauma pode ser a origem e até o fim da maldição, mas seus desdobramentos e sua única solução possíveis são aceitar o terror e jogar o jogo do gênero.