Mickey 17 é sátira política superficial e incapaz de expor o capitalismo
Novo filme de Bong Joon-ho ataca Donald Trump mas se esquece do sistema que o criou
Meu maior problema com Parasita – que está longe de ser ruim, mas que também não é, pra mim, um grande filme – é com o fato de que o Bong Joon-ho tem extrema dificuldade em escapar do individualismo nas críticas. Peguemos por exemplo o filme que inspirou Parasita, o Mulheres Diabólicas do Chabrol. Os patrões não são más pessoas, e as empregadas são as figuras mais controversas possíveis. Mesmo assim, elas vão chacinar aquela família. Não porque são bons, não porque poderiam ser maus, mas porque não é sobre as pessoas, é sobre o sistema. Em Parasita, essa crítica ao capitalismo acaba diluída quando a narrativa vilaniza o patrão não por sua posição, mas pelo caráter do personagem. Se torna uma crítica individualizada e muito bem-vinda no capitalismo. O reconhecimento na Academia não foi por acaso.
Acho que o problema se intensifica em seu novo filme, Mickey 17. Para resumir a sinopse: Mickey se inscreve no programa espacial do político e empreendedor Marshall (Mark Ruffalo imitando Donald Trump por duas horas) como um Descartável. Isto é, o personagem faz o trabalho que ninguém mais pode fazer, pois está constantemente em risco de vida. Só que há uma máquina capaz de transportar suas memórias para um novo corpo e, assim, ele segue, morrendo e ressuscitando constantemente (o 17 do título é referente à versão que protagoniza a trama).
Antes de tudo, vale dizer: Mickey 17 tem alguns momentos bastante inspirados. Bong já demonstrou ter tato para o humor pastelão em outros carnavais. Aqui, mesmo que não seja o melhor (nem o pior) filme de Bong, o sul-coreano acerta na medida, e entrega algumas das cenas mais divertidas de sua carreira. O problema é que elas parecem totalmente desconexas do restante do filme, que em certos momentos, quer muito soar importante. A sátira estabelecida é, não inconscientemente, muito similar à de Paul Verhoeven em Tropas Estelares. “E se a humanidade estivesse tentando exportar seu imperialismo para além da Terra?”. Em ambos os filmes, uma raça alienígena é o alvo.
Só que Verhoeven faz uma sátira ao fascimo mais distanciada de figuras da época, mais pensada em funcionar para diferentes contextos. Bong, por outro lado, mira diretamente em Donald Trump, o que é justo, mas traz consequências. Mickey 17 é um filme até mais preocupado em atacar a figura de Trump do que em questionar o sistema que possibilitou sua ascensão, eleição e retorno. Se em Tropas, o sistema inteiro é culpado e por isso não há um vilão a ser derrotado para resolver o problema, em Mickey, a impressão que passa é que o único problema mesmo é o próprio Marshall.
É Bong mais uma vez fazendo uma crítica centrada em uma figura e ignorando o contexto, mesmo que se esforce mais para contextualizar a obra do que Verhoeven. No clímax do filme, quando Marshall já foi morto, o pesadelo que Mickey tem ao dormir não é uma nova figura fascista, é apenas o ressurgimento do próprio Marshall, como se o vilão fosse o único mal daquele mundo. A destruição da máquina de clonagem é tratada como um grande triunfo, mas não o é. A máquina é neutra, como toda tecnologia, como toda técnica. Mickey 17 derrapa em sua sátira por apresentar um argumento que ilustra críticas apenas às lideranças, e não ao sistema.
Marshall é apenas mais um bilionário que resolveu explorar pobres para enriquecer. Mesmo dentro do universo do filme, é difícil não imaginar que, mesmo com a morte de Marshall, não surgiria um novo líder daquele tipo. Pois é assim que o capitalismo se sustenta: mantendo uma divisão de classes onde os de baixo só são autorizados a existir enquanto enchem os bolsos de quem está em cima.
Por isso, mesmo que Mickey 17 tenha boas cenas satíricas, a crítica parece ficar pelo caminho. A cena do jantar, por exemplo, é exemplar no que tange as comédias pastelão. Mas o que Bong propõe ou constrói a partir dela? Nada. O que Bong propõe a partir do momento em que as peças estão no tabuleiro e o jogo fica claro para o espectador? Nada. O filme simplesmente entra em uma sequência de cenas cômicas para continuar explorando o quão patética é a figura de Marshall, mas sem propor nenhuma subversão a esse sistema. Pelo contrário, a grande vitória do filme é colocar uma oficial da lei análoga à Kamala Harris no posto de líder.
De nada adianta as referências ao mundo real e ao cinema político se elas não são amarradas em contexto maior. Claro, é legal ver momentos, por exemplo, como quando Marshall vai enfrentar os alienígenas e é filmado de baixo para cima como uma figura nazista de Leni Riefenstahl. Mas até mesmo essa ideia, interessantíssima, é mal aproveitada porque o filme parece mais interessado na comédia oriunda do texto do que na construção imagética – a cena em si é fugaz demais para ter impacto.
Até mesmo bons questionamentos como identidade e monogamia – a cena do ménage é a melhor de Mickey 17 – são sabotados por um filme que parece trazer esses momentos sempre de forma isolada. O que o filme discute sobre identidade e sexualidade a partir desse momento? Quais ideias ele traz para seu personagem? Nem no texto, nem na imagem, nada é apresentado.
No fim, o filme acaba mergulhando tanto no farsesco que até suas críticas soam como um embuste. A recriação do atentado a Donald Trump é até bem filmada, constrói bem sua tensão, usa bem o zoom para localizar o espectador na geografia do espaço, mas nada diz. É uma sequência que funciona apenas para levar o texto de Mickey 17 adiante e nada mais. A obra é cheia de momentos interessantes que são desperdiçados por não terem continuidade ou desenvolvimento.
Parece também que todos os personagens fora do núcleo principal existem só para tentar reforçar o lado dramático do filme. O amigo sacana de Steven Yeun (bem, como de costume) é extremamente mal aproveitado, é praticamente um recurso do filme para que Nasha tenha seu momento de fúria. São personagens extremamente funcionais, mas que pouco têm construído para si mesmos.
Sem querer comparar, mas usando apenas como paralelo, já que a ideia de Bong é referenciar o filme de Verhoeven… pensemos em Tropas Estelares. A cena do exército americano subjugando os alienígenas e celebrando não sua morte, mas a conquista de seu medo, é um retrato perfeito do imperialismo e do colonialismo, uma cena que ficou para a história da ficção-científica e do cinema de sátira. O que fica de Mickey 17 além das cenas humilhando seu protagonista e o vilão que imita Donald Trump? Qual ideia Bong foi capaz de construir por suas imagens em 140 minutos de filme? O suposto filme político e satírico traz algo de novo, ou apenas segue a cartilha de desprezo a figura individualizada de Trump sem questionar o sistema? Nesse sentido, até mesmo Não Olhe Para Cima conseguiu ser mais complexo.