Megalópolis (2024) sucumbe pela profusão de imagens em ebulição
Projeto de quarenta anos do diretor americano padece diante de sua própria presunção
O trabalho da vida de Francis Ford Coppola é também um documento de sua trajetória em Hollywood desde os sucessos de O Poderoso Chefão e Apocalypse Now. Idealizado há quarenta anos, Megalópolis é um acúmulo não só das ideias que originaram o projeto, mas de tudo que Coppola vivenciou e testemunhou no cinema e no mundo desde então. É um filme que surge não só como desabafo de seu criador, mas como uma tentativa de estudar a genealogia da América para compreender a queda de seu império,assim como Roma, embora também tome outros rumos no percurso.
Na trama, Cesar Catalina (Adam Driver) briga pelo direito de reconstruir Nova York (ou Nova Roma) utilizando sua nova criação, o Megalon, ressignificando espaços para salvar a civilização de seu aparente e inevitável colapso. Contra ele estão seu primo Clodio (Shia LaBeouf), o prefeito Cicero (Giancarlo Esposito) e a jornalista Wow (Aubrey Plaza). Ao seu lado, a filha do prefeito, Julia (Nathalie Emmanuel).
Fica evidente o desejo de Coppola por criar um paralelo entre a queda do império imperialista americano com a queda gradual de Hollywood nos últimos 40 anos, principalmente por Cesar se enxergar como um artesão no meio de executivos e políticos. Nisso, Coppola acerta, já que, de fato, tudo é reflexo de um momento do mundo. Tais crises caminham juntas, bem como a crise financeira de 2008 trouxe seus efeitos no cinema, para além dos orçamentais. Em Paixão (1982), Godard fala sobre como todos os assuntos se conectam, em um filme cuja mise-en-scene não só não nega as crises do mundo, como as abraça e as deixa influenciar na narrativa – afinal, o cinema é a soma do mundo e o mundo é a soma do cinema. Em Megalópolis, Coppola faz o contrário, e trabalha as ideias de forma solta e independente, como se o longa fosse fracionado em diversos curtas-metragens que abordam temáticas distintas.
Tudo começa a ruir com a cena do casamento, tão longa quanto aquela icônica de O Franco Atirador (1978). Porém, no filme de Michael Cimino, a enorme metragem da sequência se dá devido ao tom de memória da cena, como se o cineasta, consciente do sofrimento pelo qual os personagens passarão ao chegar no Vietnã, quisesse dar a eles um grande momento de felicidade que parecesse suspenso no espaço-tempo. Já na sequência do casamento em Megalópolis, são tantos acontecimentos concomitantes que em dado momento eles não só deixam de se conectar, mas se estendem até a saturação, gerando um esvaziamento de significado nas imagens. A sátira aos burgueses e aristocratas perde potência à medida que os próprios personagens vão perdendo espaço em tela para figuras irrelevantes para a narrativa.
Tudo que se dá depois do casamento segue essa lógica desconjuntada. O personagem de Lawrence Fishburne (uma espécie de historiador criado basicamente para servir de narrador e traçar paralelos com a História) é simplesmente enxotado do filme, ao passo que o comentário sobre a queda da América e da indústria dá espaço para abstrações sobre Trumpismo, modernidade, tecnologia, poder, de uma forma rasa. O filme parece sempre estar interrompendo sua própria narrativa para apresentar alguma de suas ideias, estagnando o todo e não desenvolvendo nada. Soa como um experimento de cinema mais do que como um filme propriamente dito – e não no sentido do cinema experimental, que fique claro. As novidades surgem, levam Megalópolis em uma nova direção e logo são abandonadas completamente. Não há legado no próprio filme.
O acúmulo de ideias faz as imagens entrarem em ebulição. Não há mais desenvolvimento a partir do sequenciamento de planos, não há mais uma construção de sentido nas composições. Toda a narrativa se desfaz enquanto Coppola se agarra ao mais simplório dos fios, na tentativa de manter o espectador engajado: o romance entre Cesar e Julia. E até este romance parece perdido no meio da profusão de imagens estéreis que são projetadas no caminho.
Mas o que dói mesmo não é nem isso. A ruína de Megalópolis é o fato do filme ser uma batalha pela salvação da civilização a partir de Nova York, e tanto a civilização quanto a cidade serem absolutamente inócuas. É uma cidade sem alma, sem pulso, sem vida. Uma mistura de conceitos visuais que não servem de alicerce para que aquele espaço construa uma personalidade. É lógico que Coppola tenta operar pelo farsesco e isso justifica parcialmente a ideia – pelo menos a priori –, mas será mesmo que não há nada de real que possa ser salvo? Não há nada palpável que possamos sentir que de fato importa? Não há humanidade nessas ruas, filmadas de maneira tão distante?
Quando se quer abarcar tudo sem aprofundar nada, o que poderia ser audacioso se torna apenas presunçoso. Audácia implica dificuldade, coragem, enquanto presunção é vaidade, prepotência. No fim das contas, quando o personagem que representa Coppola no filme se apresenta como o grande e poderoso artesão destinado a salvar o mundo, é a confirmação dessa presunção do cineasta que parece se achar muito importante, mas que não consegue justificar isso em seu filme. Coppola soa tão arrogante em Megalópolis que a ideia parece ser se apresentar como o artista que vai salvar o mundo, mas sem ter o mínimo interesse em conhecer esse mundo e quem nele vive. Como cineasta, Coppola não tem nenhuma intenção em ver esse mundo ter materialidade, ser um reflexo de algo tátil.
Todo esse fracasso é aprofundado pela decupagem de Megalópolis. Se o filme já quer abarcar mais ideias do que Coppola parece conseguir lidar em 140 minutos de filme, o fato de a montagem estender cenas infrutíferas, não ajuda. Mas o pior é como o filme decide, em vez de aprofundar a psique e as emoções daqueles personagens, mantê-los como figuras unidimensionais e que apenas citam Marco Aurélio ou referenciam Shakespeare a fim de sugerir uma profundidade que nunca é corroborada pelas imagens.
A hiperestilização de Coppola virou assunto desde o lançamento do primeiro trailer. Muitos comparam o longa com Pequenos Espiões (e honestamente? Em certos momentos, se torna uma comparação justa). Mas o problema com essa estilização pra mim não é a cafonice (escolha justa para qualquer cineasta), e sim o fato de que não há um esforço para que essa estilização desenvolva a história.
Peguemos Speed Racer (2008) de Lana e Lily Wachowski, por exemplo. É um filme que se arrisca muito em seu estilo e ritmo, mas sempre o faz a fim de desenvolver a narrativa. Cada corrida de Speed traz consigo uma carga dramática maior em virtude dessa aceleração constante. As imagens não entram em ebulição, mas em cristalização. Algo é criado e mitificado a partir do que é proposto. Enquanto em Megalópolis, tudo se desfaz diante dos nossos olhos. As imagens são tão efêmeras quanto um sopro, sejam elas as mais lindas ou as mais horrendas do filme.
A artificialidade proposital de Coppola serve como crítica à sociedade das aparências de hoje? Com certeza. Mas o diretor nitidamente aspirava aprofundar suas ideias, principalmente quando tentou transformar o personagem de Shia LaBeouf em um híbrido de Donald Trump com qualquer produtor super poderoso de Hollywood. A ideia é que todos operem como farsa, menos Cesar e sua amada, já que estes controlam o Tempo no filme. Mas a dupla tem a mesma profundidade, complexidade e desenvolvimento de qualquer outro personagem do filme. É como um jovem que se acha muito mais esperto que os colegas de escola, mas tem os mesmos pensamentos e hábitos.
No fim das contas, vale o elogio pelo esforço de Coppola por tentar algo diferente, por seu ímpeto de arriscar. Mas não é o suficiente para salvar Megalópolis da autoindulgência, de apresentar uma noção de salvação que vem por uma arte que não dialoga com o mundo nem com as pessoas. Maior do que a ambição de Francis Ford Coppola, apenas a tragédia de um filme cujas imagens se perdem e se anulam em um piscar de olhos.
Megalópolis parte do grande acúmulo de ideias e experiências de Coppola para chegar ao mais absoluto nada de seu discurso final. Um filme que arrisca alto é sempre interessante de se assistir, mas quando o tombo é maior do que as aspirações, tudo o que ele consegue despertar é indiferença e pena.
Excelente texto, como sempre, apesar de discordar em vários pontos.