LOCADORA FIORE #9 Eu não tenho boca, mas preciso gritar
A Mosca de Kurt Neumann, A Mosca de David Cronenberg e o conto de Harlan Ellison
O A Mosca de David Cronenberg é exaltado como um grande clássico do body horror, uma releitura que homenageia o melodrama/terror de 1958, dirigido por Kurt Neumann. Claro, há semelhanças – e muitas –, mas o que me interessa é mais como os dois diretores abordam a história do cientista transformado em mosca de maneira radicalmente diferentes, e como Cronenberg busca outras inspirações para sua obra. Vamos começar pelo filme de Neumann, estrelado por David Hedison, Patricia Owens e Vincent Price. Um filme que assisti pela primeira vez na última semana e fiquei bastante impactado.
Para quem assiste à obra sem saber muito da história além do título e da sinopse, o filme é um assombro. Uma mulher liga para seu cunhado na calada da noite e diz: “Eu matei meu marido, eu matei seu irmão”. Começa então a investigação policial, e nada parece fazer muito sentido. Helene e Andre eram um casal apaixonado, parceiro, sem crises ou traições. Quando perguntada o motivo que a levou a matar Andre, porém, Helene se recusa a revelar. O que Neumann constrói a partir disso é um melodrama familiar bem típico. Há até a sugestão de um possível triângulo amoroso entre os dois irmãos e Helene. Conforme a narrativa avança, mais detalhes vão sugerindo desdobramentos perversos para aquela história.
E a perversidade é real. Mas não por parte de Helene, de Andre ou de François. Acontece que Andre trabalhava em um experimento científico que acabou levando-o a ter seu DNA misturado com o de uma mosca. Conforme Andre se transforma em uma mosca, a mosca se transforma em ser humano. Daí entendemos a mosca de cabeça branca que Helene e seu filho caçam pelo quintal. A trama ganha contornos trágicos ao constatarmos que Helene precisou matar seu marido a pedido do próprio. O homem que ousou desafiar a natureza e, pondo o trabalho acima da vida, arriscou a própria sobrevivência e pagou o preço. O trabalho modifica até mesmo a aparência física de Andre, deforma seu corpo e anula sua razão e sentimentos.
Daí em diante, cada nova cena traz uma revelação mais macabra que a anterior. Cada corte anuncia consigo um novo pequeno apocalipse. E é impressionante como Neumann lida com tal escalada no trágico em uma obra de apenas 90 minutos. Mas o ponto central fica: o trabalho como caminho para desumanização do homem. O sonho em alcançar o divino sendo convertido em mergulho no inferno. A Mosca de Neumann fala muito mais sobre a sociedade, sobre ciência — e a busca iluminista pelas novidades a qualquer custo —, e em uma obra que cria um efeito dominó para esses temas. Tudo é entrelaçado, tudo se alavanca e as tragédias se acumulam.
Já o A Mosca de David Cronenberg tem outra pegada. Jeff Goldblum é Seth Brundle, um cientista que estuda teletransporte e é um solteirão galanteador. Um dia convida uma mulher para conhecer seu laboratório – que é também sua casa –, e acaba descobrindo que a gatinha é também jornalista, o que se torna um perigo para seu trabalho. A solução encontrada é perspicaz: convida Veronica (Geena Davis) para acompanhar e documentar seu trabalho em troca de não vazar a informação à imprensa. A dupla começa a morar junta no laboratório, e a parceria se torna paixão. Temos um filme.
Só que um dia, alcoolizado, Seth testa a máquina consigo, tentando se transportar de uma base para a outra. O experimento é bem sucedido, mas tem um preço: seu DNA é fundido ao de uma mosca que estava na máquina. Aos poucos, o cientista começa a se tornar o monstro. Não sem antes, claro, se sentir um super-herói. Fica mais forte, mais ágil, mais disposto, mais excitado e seguro de si. Os primeiros efeitos são positivos, como um vôo de Ícaro. Fugiu de seu labirinto e alçou vôo aos céus. Mas chegou perto demais do Sol ao testar a máquina de forma tão prematura. Como o próprio Seth diz em dado momento, a máquina só entende zeros e uns. Não há empatia da máquina, ela só sabe o que lhe foi ensinado, e a fusão dos DNAs, que se torna uma maldição para Seth, era apenas o computador seguindo sua programação.
Sem que houvesse qualquer consciência como motivados, o computador fez de Seth um monstro, tirou dele tudo que ele mais prezava. O personagem perde sua beleza, sua força, seu intelecto e, então, sua própria humanidade. O personagem falastrão e bem-humorado de Jeff Goldblum é substituído por uma mosca gigante, agressiva, que age puramente por instinto. O destino não poderia ser outro. Ceifado de tudo que o fazia se sentir vivo, impedido de expressar qualquer forma de amor, o filme termina com Seth implorando para que Veronica o mate. Nem mesmo um “adeus” ou “eu te amo” ele é capaz de proferir, já que se tornou uma mosca por completo.
Assistir ao A Mosca de Cronenberg me lembrou do conto I Have No Mouth, And I Must Scream, escrito e lançado em 1967 por Harlan Ellison. Concebida no auge da Guerra Fria e ambientada em um futuro não tão distante, a trama nos leva para um mundo em que os supercomputadores dominaram a Terra. Ou melhor, um supercomputador, o AM. Apenas cinco seres humanos sobreviveram, e são mantidos em cativeiro, no subterrâneo do planeta, pelo computador que despreza o ser humano mais do que tudo. O AM, então, se propõe a torturar as cinco pessoas por toda a eternidade, os fazendo reviver dores e traumas aterrorizantes e os impedindo de simplesmente morrer.
É um conto que também fala sobre o indivíduo desafiar a natureza pela tecnologia. Que mostra o preço de se dar poder a uma consciência artificial, sem empatia by default. Como o próprio AM diz, tudo que ele é capaz de sentir é ódio.
"Ódio. Deixe-me te dizer o quanto eu passei a te odiar desde que comecei a viver. Há 387.44 milhões de milhas de circuitos impressos em camadas finas que preenchem o meu complexo. Se a palavra ódio fosse gravada em cada átomo dessas centenas de milhas, não seria igual a um bilionésimo do ódio que sinto pelos humanos e, nesse microinstante, por você. Ódio. Ódio".
O conto chegou a ser adaptado para um jogo — tão macabro quanto inesquecível —, lançado em 1995. A diferença do jogo é a potência de imersão, já que o jogador se vê tentando escapar de um destino que parece inescapável. A morte não é uma saída, é um sonho distante. Em ambas as obras, no fim, um dos humanos consegue matar seus iguais — o sonho de todos eles, que eram torturados e mantidos vivos ad eternum — e escapar das torturas do AM, mas não sem um preço. No jogo, vale a nota: há finais alternativos, que não são muito menos cruéis, mesmo que haja uma salvação ao alcance do jogador.
Como vingança pela derrota, a máquina que odeia a humanidade mais do que tudo — um alerta sobre os perigos dos avanços tecnológicos concebidos durante uma era de ódio como foi a Guerra Fria — transforma Ted em um ser de forma gelatinosa, deformada, incapaz de se comunicar, com articulação limitada e fadada a sentir dor em cada junta e músculo do seu corpo. O conto — e o jogo, em um de seus vários finais possíveis — terminam com a citação que dá título à obra: “Eu não tenho boca, mas eu preciso gritar”. É o sentimento de impotência diante de uma tortura eterna a ser vivida por aquele personagem.
Lembrei do conto de Ellison pois o fim do A Mosca de Cronenberg se assemelha muito a isso. Se a obra de Neumann converge para uma crítica à vida dedicada ao trabalho, ao sucesso a qualquer custo e à tragédia desencadeada por cada uma das decisões tomadas por Andre e Helene, Cronenberg faz uma obra mais focada na vida daqueles personagens. Seth criou sua própria maldição, fez de seu computador seu próprio AM e se condenou a se tornar um monstro sem paralelos no cinema.
No fim, tudo que havia de belo e afetuoso em sua vida lhe foi ceifado, e o único gesto de amor possível para Veronica era matar a pessoa que ama. Ao fim, em processo avançado de transformação, já sem nenhum resquício de humanidade em sua aparência, incapaz até mesmo de falar, o único pensamento que consigo imaginar passar pela cabeça de Seth é o mesmo de Ted: “Eu não tenho boca, mas preciso gritar”.
Não só pelos desencadeamentos trágicos nas vidas de Andre, Seth e Ted, mas também pela visão de mundo na qual as criações humanas destruirão a própria humanidade, que os dois A Mosca e Eu Não Tenho Boca Mas Preciso Gritar se assemelham. A diferença primordial é que Neumann e Cronenberg pensam esse processo ainda em um microcosmo, preso em um laboratório, afetando a vida de cientistas e das pessoas que amam. Enquanto isso, Ellison vai na extremação desse processo, imaginando um mundo futurista inteiramente destroçado por isso, no qual as criações humanas nos subjugam, torturam e deformam ao seu bel prazer. Que bom que, pelo menos por enquanto, ainda temos boca.
Mantendo a tradição da Locadora, vamos para a indicação! Essa semana eu vou recomendar um filme que não tem uma conexão tão forte com o tema, mas que também é um body horror que leva a ideia do corpo transformado para outro caminho. Quem tá lendo isso já viu, leu ou ao menos ouviu falar de Akira, de Katsuhiro Otomo. Já até citei em outro texto da Locadora. Mas hoje vou recomendar um filme inspirado por Akira, o japonês Tetsuo (1989), de Shinya Tsukamoto. Os apoiadores podem ficar tranquilos, o link para baixar o filme vai estar no nosso grupo de Telegram assim que a newsletter sair, assim como o link para o conto e para o filme de Neumann 😉