LOCADORA FIORE #8 Melancolia urbana e amor até as cinzas
Vamos falar de City Pop, Kanye West, Marina Lima e Jia Zhangke?
Meu gosto musical passou por muitas fases, até rock japonês eu já fui viciado ao ponto de pedir CD do thE GazettE ou do L’arc~en~Ciel de presente de aniversário. Já fui “rock wins”, já tive hiperfoco em Exaltasamba, e por aí vai. Hoje acho que sou eclético. Mas o único gênero que sobreviveu a todas as fases, que ouço desde criança (criança mesmo) é o City Pop. Pra quem não conhece City Pop, é um subgênero de pop japonês do fim dos anos 70, marcado por letras e harmonias que retratam a melancolia da vida e dos amores na cidade. Conheci o City Pop pelos animes, principalmente pelas músicas da Matsuko Mawatari, minha cantora favorita do gênero.
Essa edição dialoga um pouco com a Locadora #5, mas vejo mais como uma continuação da conversa do que como uma repetição. Se lá eu falo sobre as obras de Nelson Rodrigues, Chico Buarque, Katsuhiro Otomo e Andrea Tonacci, aqui o recorte vai ser bem diferente. Sobre Mawatari: minha música favorita dela é Sayonara Bye Bye, que foi um dos temas de encerramento de Yu Yu Hakusho – aliás, anime que comentei apaixonadamente no texto exclusivo para apoiadores da newsletter aqui. O que acho lindo na música é que ela não fala nada sobre espaço. A letra é totalmente sobre uma despedida de um amor que não deu certo – por motivos que sequer convém a Mawatari citar. Mas, então, onde entra o aspecto urbano nisso?
Ora, no som. Apesar de ser um gênero cuja definição ainda é tema de discussão, é praticamente consenso que o City Pop é marcado por suas influências de jazz e R&B. No caso de músicas como a de Mawatari, os gêneros surgem em arranjos simples, mas recheados. Diversos instrumentos acompanham a harmonia e criam suas próprias melodias paralelamente aos versos da cantora. Como se assim ela pudesse, então, criar a ambiência. Os sons, às vezes soando até difusos – mas nunca cacofônicos – fazem com que nós sintamos essa presença do urbano. A cidade grande não é o tema, mas o palco, e permeia toda a melancolia de um amor fracassado.
Essa melancolia da cidade, obviamente, não é algo exclusivo da música japonesa. No Brasil mesmo, o hit oitentista Fullgás, da Marina Lima, tem essa mesma ambientação de música de cidade grande para falar sobre amor e sedução. Com uma letra que soa como um lamento, Lima versa em tom lamurioso sobre um amor tão intenso quanto efêmero, tão eterno em marca quanto fadado à brevidade em duração. Nos Estados Unidos não é diferente, peguemos Street Lights, do Kanye West, por exemplo. “Seems like street lights glowing happen to be just like moments passing in front of me”. É como se houvesse uma força nas grandes cidades que subjuga desejos e ordena o ritmo de todos. Para Kanye, estar nesse mundo é entrar em um carrossel do qual você não tem controle da velocidade nem do ritmo. Uma visão quase niilista dada a indiferença dele em relação à sua ausência de poder – algo que, evidentemente, ele passou a enxergar de outra maneira ao longo da carreira e da vida.
Mas puxando logo para o cinema, eu gosto muito de como o Jia Zhangke lida com essa melancolia da vida na cidade. Durante os últimos 50 anos, a China passou por diversas transformações econômicas, sociais e estruturais. Um dos grandes projetos de Xi Jiping e do Partido Comunista Chinês para o país é a urbanização da população rural, e em Amor Até as Cinzas, Jia aborda a questão de um país passando por profundas transformações com um casal protagonista tão deslocado que, em momentos, parece até anacrônico, externo ao universo do filme.
Zhao Qiao passa metade do filme em busca de reconquistar o respeito e o amor de Guo Bin após ser presa por defendê-lo. Nessa jornada, viajamos por diversos espaços da China do século XXI, sobrando espaço até para algumas instalações dos Jogos Olímpicos de Pequim. E a força do filme, pra mim, reside justamente na sensação de que observamos um jogo de gato e rato entre dois fantasmas do tempo, dois gansgters dignos da Nova York dos anos 20, ou de uma China que ainda não tinha como projeto cultural extirpar a influência ocidental de sua cultura e economia. São espectros, figuras melancólicas como personagens em uma canção de uma Matsuko Mawatari ou de uma Miki Matsubara. É perfeitamente imaginável um “edit” do filme com Qiao perseguindo Bin ao som de Mayonaka no Door / Stay With Me. Pois o que os separa não é só uma dessincronia de sentimentos, mas esse amor ser concebido em um espaço urbano ordenado pelo poder.
Esse tema é muito precioso pra mim ao pensar no estágio do mundo em que vivemos. Há uma aceleração do processo de individualização de tudo. Nada é feito para — e nem pode — durar. Isso vai das relações pessoas e precarização do trabalhador (“você é seu próprio chefe” é o caralho, pô) à busca pelos heróis self-made men que de self-made nada têm (Trump, Musk, Marçal, Lemann). O lamento de Matsuko Mawatari sobre o amor fracassado dói e, mesmo sendo diferente, me faz lembrar dessa sensação de que o mundo vive uma onda de incapacitação de concepção de afeto se não pelas estruturas do capital. É a lástima por algo puro que foi desperdiçado ou descartado. Não temos acesso aos detalhes que impediram esse amor de prosperar, mas se toda a música é atravessada pela presença urbana da harmonia, o meu palpite é na direção do mundo invadindo o relacionamento mesmo. Ame, contanto que não atrapalhe sua carreira. Viva, contanto que não pareça um vagabundo. Sinta, contanto que isso não tire sua produtividade. Em suma, o mundo virou um grande LinkedIn.
Bem, pra fechar… A recomendação de hoje é o filme Prazeres Desconhecidos (2002), também do Jia Zhangke e também estrelado pela Zhao Tao. Esse vocês precisarão do “dê seus pulos flix”. Os apoiadores podem ficar tranquilos que vou mandar o link do filme no nosso grupo mais tarde! Ah, e de quebra, caso tenha se interessado por City Pop, fique aí com a playlist feita pelo meu amigo Henrique.
Um baita texto Fiore. Desculpa a demora do comentário kkkk. Mas eu não sou lá muito da música, inclusive quero conhecer mais nichos de outros cantores. Todo esse papo sobre o urbano e sobre a melancólia das cidades, me faz lembrar do Yung Buda quando ele faz o Músicas para Drift Vol.1 que e uma coletânea que vai de ritmos mais radicais, para os mais melancólicos, e como se pudéssemos sentir a vastidão e o vazio da noite pelo som de um "Autumm Mini Ring" que é uma música em um ritmo mais lento, porém envolvente. Diferente do ritmo de "Suzuki Escudo" em que um tom de velocidade, tanto no ritmo quanto na letra mesma, que e puro escracho. Enfim, foi isso que veio a minha mente. Inclusive todo esse papo de drift e Urbano me faz te recomendar a assistida em Initial D, anime de drift nesse espaço noturno, com eurobeat torando e tudo de bom.
Belo texto, Fiore! Belo e melancólico como uma canção de City Pop.