LOCADORA FIORE #6 O sonho filmado; o inconsciente manifestado
Lynch, Tarkovsky e suas diferentes maneiras de fazer cinema com o inconsciente mantendo nossa submissão como motor narrativo
Não acho fácil filmar um sonho. Na verdade, a mera ideia de mimetizar um sonho é um negócio complicado. A arte lida com a mimese, a reprodução, desde sempre. Se pegarmos as pinturas da Caverna de Chauvet, que Herzog filma em Caverna dos Sonhos Esquecidos, veremos que na pré-história já havia um proto-cinema que buscava reproduzir a vida lá fora, inclusive mimetizando os movimentos dos animais. É uma imitação da realidade.
Mas a realidade é percebida a partir do consciente humano. Como filmar, então, o que vem do inconsciente, aquilo que sentimos, mas não compreendemos e geralmente renegamos? Como transpor em imagens aquilo que vem das profundezas das nossas mentes, dos nossos desejos? Para muitos diretores, esse retrato do que é essencialmente incompreensível parece tão distante que sequer vira um objetivo, mas algo a se evitar.
Pensemos no A Origem do Christopher Nolan, por exemplo. Tenho meus problemas com o filme, mas já ando de saco cheio de falar mal do diretor. No caso, acho que se faz necessário. Afinal, qual blockbuster dos últimos 15 anos é ambientado em uma espécie de mundo dos sonhos teve o mesmo tamanho? Provavelmente nenhum. Mas sobre A Origem, me incomoda muito como, para o Nolan, o sonho é algo tão rígido e insípido. Se pensamos em sonhos, vamos diretamente ao lúdico, ao fantástico, ao inexplicável, adjetivos que vão na contramão de tudo que vemos no filme estrelado pelo Leo DiCaprio.
O mundo dos sonhos de Nolan é apenas um espaço para a ação acontecer e ordenado sempre por ações de humanos bem conscientes de seus feitos. Sua construção não tem grande valor, o importante ali é como os agentes manipulam esse espaço — algo que considero uma falha crítica, algo que abordo mais lá pra frente no texto. O que me incomoda é como esse espaço ainda é muito oriundo de uma consciência bem clara. Não há sequer um momento em que o filme se entregue às imagens. Na verdade, elas sempre estão submetidas aos personagens. É como se mesmo nos sonhos, o máximo de fantástico que pode acontecer é uma inversão das leis da física, algo que, convenhamos, até o Chat GPT responderia.
No lado oposto disso, temos Stalker, do Tarkovsky. No filme, os personagens vivem em um mundo destruído, bastante ordinário e cinzento – inclusive fotografado sem cores. Mas há uma tal de Zona onde, reza a lenda, os sonhos se realizam. E é para lá que vão o protagonista e seus dois amigos, a fim de abstrair da realidade. O problema é que, chegando lá, essa realização dos sonhos é subvertida. O que se encontra não é uma realização de objetivos, mas uma manifestação do inconsciente. E como dizem na psicanálise, o inconsciente humano é violência, dor, sofrimento, pensamentos intrusivos.
O que se vê no filme a partir de então é um amálgama de algumas das sequências mais depressivas já filmadas. Os personagens se veem mergulhados em seus próprios pensamentos, agora manifestados em matéria, O ponto de Tarkovsky é muito sobre a realidade ser inescapável e que uma viagem aos confins da própria mente não traria a solução, apenas mais tormento. E o que mais me agrada aqui é que, apesar de podermos sim traçar diversos paralelos com o mundo externo – especialmente com o momento da União Soviética –, Tarkovsky jamais se entrega a isso e sustenta e protege um certo mistério sobre as imagens.
Stalker é muito mais sobre o efeito do mundo nos sonhos de seus personagens do que sobre o mundo em si. Acho um filme brilhante por escapar dessa armadilha. O que importa não é o que eles encontrarão lá fora ao voltar, e sim o que viveram lá dentro, o que conheceram sobre si mesmos. Stalker é, na verdade, o pesadelo da mente. Se a gente fala de sonho em um sentido menos sombrio, com as nuances típicas de um (alegria, apreensão, curiosidade), para filmar já tem outra pegada. E como fazer esse filme?
David Lynch tem a resposta em Cidade dos Sonhos. Eu sei que quem começou esse texto já sabia que era pedra cantada falar desse filme, porque é tão inevitável quanto óbvio. Todo mundo já falou sobre Cidade dos Sonhos. Mas eu revi nos últimos dias pra falar sobre no Desencontros e continuo ficando maravilhado com a forma como o Lynch cria esse mundo dos sonhos que é o mais próximo possível da experiência de viver uma aventura ao fechar os olhos e apagar.
É tanta coisa que eu acho incrível que o Lynch faz aqui. Como não notar, por exemplo, como ele filma a cena da lanchonete, a princípio, com um plano e contraplano bastante tradicional, e aos poucos começasse a levitar a câmera conforme o personagem começa a suspeitar de que não está acordado? Ou até mesmo quando Betty e Rita começam a andar juntas e se comportam do jeito menos real possível, quando até suas blocagens são sincronizadas como se só uma delas existisse e a outra fosse a sombra? A própria cena em que Betty chega a Los Angeles, a dublagem de Naomi Watts deliberadamente não acompanha suas expressões faciais. A voz parece muito mais vívida do que o rosto petrificado dela.
Isso sem falar em como a montagem é o elemento basilar para a construção desse sonho. Há personagens que criam uma relação e até uma tensão, uma eletricidade entre eles, mas que nunca são filmados no mesmo quadro. Suas conexões existem única e simplesmente pela justaposição de imagens, que faz um olhar encontrar o outro. Não lembro de muitos filmes que retratam coisas tão típicas do sonho quanto isso. Inclusive, na própria cena de Betty chegando ao aeroporto, quando ela procura por suas malas e logo as vê sendo levadas pelo taxista. Um corte resolve, um corte responde tudo.
E Lynch faz tudo isso em um filme que passeia por todas as emoções do consciente e do inconsciente. Por isso é um film noir, mas também é terror, drama, romance, fantasia… E é também um filme sobre filmes. O que é a cena em que o maestro diz no hay banda se não um ode ao próprio fazer cinematográfico? “Não há banda, mas se escuta uma banda” é literalmente o conceito de música extradiegética — que se ouve mesmo sem se pertencer à diegése, ao cosmo do filme. É se permitir encantar pelo cinema como arte que mimetiza a realidade, mas tornando possível o impossível. Levando o inconsciente à superfície.
É por isso que quando se fala de Cidade dos Sonhos, pouco me importa a trama dos sonhos destruídos por Hollywood, o jogo de desejo e ambição e coisas do tipo. O que mais me encanta é como Lynch transforma tudo isso em um sonho filmado que depende que cada raccord funcione para sustentar essa atmosfera. É o encontro do inconsciente com a consciência, um estado de transe de duas horas.
Mas, enfim, eu acho que o que diferencia filmes como A Origem de filmes como Cidade dos Sonhos e Stalker é que, ao filmar um sonho, Lynch e Tarkovsky assimilam o elemento chave dessa ideia, que possibilita que a narrativa realmente pareça com algo oriundo do nosso inconsciente: a ausência de agência. Os personagens não têm poder sobre seus próprios destinos, não têm controle sobre o que acontece. Tudo parece soar como algo que já passou, algo que é inalcançável e incontrolável. Quando esticarmos nossas mãos, o objetivo que pretendemos agarrar já terá desaparecido. É impossível controlar nosso inconsciente e nossos impulsos, o que podemos fazer é aceitar que eles existem e lidar com eles. Já Nolan vê os sonhos apenas como extensão da consciência, e os personagens existem justamente para manipular e controlar esse mundo.
Em um sonho, somos espectadores mesmo quando protagonistas, estamos à mercê do que virá. Podemos apenas sentar na poltrona e assistir ao que nossa mente vai expor aos nossos olhos. É um raro momento de diálogo entre nossos desejos e nossa realidade concreta. E é justamente isso que entendo que Lynch quer ressaltar na cena em que Betty e Rita vão ao teatro. É a aceitação da nossa submissão. Assim como o rapaz na lanchonete que vai virar a esquina e levar um susto, mesmo sabendo que ele se avizinha.
Mais uma vez meu poder de síntese falhou e o texto ficou maior do que eu pretendia. Perdão! A Locadora Fiore desta semana vai indicar pra vocês um dos meus filmes de terror favoritos: A Hora do Lobo, que também é um pouco sobre esse conflito consciente x inconsciente (tema caro ao Ingmar Bergman). No caso, é mais puxado pro pesadelo mesmo. O filme foi disponibilizado com legendas em português inteiro no YouTube, então façam bom proveito aqui.
Quando se fala em sonhos, me vêem a mente o Paprika do Satoshi Kon que inclusive dizem ter sido plagiado pelo Nolan kkkk, mas enfim. E um que também explorar esse ideia dos sonhos como algo que não se explica, e sim só se ver o que vai acontecer. Por mais que, o filmes em certo momento tente racionalizar demais os sonhos. Mas ainda sim e um aventura em mundo onde todos os sonhos são conectados e que tudo virar uma bagunças de inconscientes em choque. O filme por ser animação, ele se permite essa explosão das cores e da própria física do mundo mesmo. E é isso que o A Origem por exemplo não consegue fazer ao meu ver. Pro Nolan e tudo muito quadrado e controlado. E o Satoshi Kon e o que vêem na cabeça e dane-se, sonhos são isso afinal de contas.