LOCADORA FIORE #14 Cloud (2024), Tigrinho, Bets e a destruição do nosso tecido social
Como o novo filme de Kiyoshi Kurosawa retrata o nosso silencioso trajeto rumo ao fim das relações humanas?
O vício em apostas, de forma rápida mas silenciosa, se tornou uma das maiores crises de saúde pública do país. E não é para menos, em um momento do mundo em que a ascensão social parece impossível, vender a solução “fácil”, ao alcance de um toque na tela do seu celular, com uma proposta “meritocrática” (todos dependem unicamente da sorte) parece atrativo. Mas a realidade é que as apostas e os jogos de azar são uma falsa promessa de ascensão. São resultado da destruição do nosso tecido social, quando propagandas de Bet nos principais canais esportivos do país começaram a normalizar apostas como um joguinho divertido e inofensivo. Não é. Normalizaram o que é abjeto, bem como tantas vezes nos últimos anos temos normalizado acontecimentos macabros – o voto de Bolsonaro na Câmara dedicado ao torturador Brilhante Ustra, a anistia dos militares e por aí vai.
Tudo o que testemunhamos ser tratado com normalidade tende a ser, obviamente, normalizado. Passamos décadas assistindo a programas policiais na TV aberta com perseguições e trocas de tiros entre a polícia e os bandidos. Aceitamos como normal resolver na porrada e aplaudir os “heróis”. Normalizamos esfaquear uma pessoa que tentou pular a catraca da estação pra não pagar a passagem. Em um capitalismo em ruínas e em um Brasil em crise profunda (identitária, financeira, cultural, política), vender o sonho da ascensão dando os dados a serem arremessados pelas mãos do acaso – ou do algoritmo – beira o macabro.
Era questão de tempo até chegar a era do Tigrinho, do Aviãozinho ou qualquer que seja o golpe da vez. Já com o acinte que é um jogo de azar normalizado e propagandeado na televisão e nas camisas dos 20 clubes mais assistidos do país, vimos milhares de pessoas da população mais pobre perderem o pouco que tinham, e membros da classe média indo à pobreza. E com a anuência dos influenciadores – mais uma vez, a desgraça do nosso tecido social: a normalização da autoridade de figuras com muitos seguidores dando dicas de como você pode ficar rico em troca de embolsar 30% da sua perda, como no escandaloso caso da Virgínia reportado pela Piauí.
E chegamos então a Cloud, novo filme de Kiyoshi Kurosawa. Você deve estar confuso como caralhos um texto sobre Bet e Tigrinho chega no novo filme do cineasta japonês, e eu te digo: a intersecção é o estudo do rompimento do tecido social. Cloud é uma investigação não só sobre a crise do capitalismo, mas das consequências geradas pelas brechas encontradas por quem quer dinheiro fácil na era em que o dinheiro desapareceu das mãos da classe média.
O protagonista, Ryosuke, tem seu emprego em uma fábrica e está prestes a ser promovido, mas larga tudo para viver de golpes em revendas na internet. O personagem, então, passa a ser perseguido por algumas figuras familiares e outras desconhecidas. “É um produto verdadeiro?”, pergunta seu assistente em dado momento. “Também não sei. Vi uma foto, comprei por 10 mil ienes e vou vender por 100 mil cada. Se não aceitarem, vendo por 50 mil. Se forem produtos desejados, serão comprados. É simples”, responde o protagonista. É a lógica do lucro a qualquer custo – bem trabalhado também no Joias Brutas, dos irmãos Safdie.
Cloud é a soma de todas as crises do capitalismo. O ex-chefe de Ryosuke, dono da fábrica, o persegue, pois o dinheiro real não consegue conceber ser passado a perna pelo dinheiro especulativo e improdutivo. Sua revolta é quase como um processo reativo e instintivo de uma geração que não entende os anseios de seus sucessores. Já o amigo, Muraoka, o persegue por ressentimento, pois deseja ter o mesmo sucesso. Os clientes do dropshipping o perseguem não para reaver o dinheiro, mas para descontar o ódio do sistema em alguém. Ryosuke, então, se torna um símbolo de tudo que está desmoronando no país – e no mundo – e, ao mesmo tempo, da pessoa que vê todo tipo de bizarrice da sociedade do século XXI sendo normalizada e faz desses ovos um omelete.
Perceba, por exemplo, como o personagem leva um susto ao se ver diante de uma arma pela primeira vez. Na verdade, até mesmo uma pedra na janela o deixa desesperado. Após dois ou três assassinatos diante de seus olhos, Ryosuke já empunha sua pistola como um profissional. Tanto viu, tanto viveu aquilo, que logo se tornou banal. Cloud aposta bastante nessa banalização das múltiplas violências do capitalismo, reiterando também como todas as relações só são possíveis a partir de alguma monetização: o amigo que sonha em ter seu dinheiro, a namorada que sonha em usar seus cartões de crédito, e por aí vai.
Sano, o assistente de Ryosuke, não foge dessa lógica. Inclusive, é o personagem chave tanto para o espectador quanto para o protagonista. É o sujeito que parece ser apenas um menino querendo ser reconhecido em seu trampo como ajudante, mas que na verdade existe em prol do sistema vigente. Já nasceu em um mundo no qual tudo que há de macabro é visto como normal. Sua tarefa é proteger Ryosuke não por ser uma boa pessoa, mas por entender o protagonista como uma ferramenta necessária para a perpetuação da barbárie e por aceitar seu papel como funcionário subserviente. Mais pessoas precisam ser enganadas e mutiladas, mais dinheiro precisa ser concentrado após ser roubado do trabalhador. E o capitalismo fará questão de que essas figuras sejam protegidas pelo próprio dinheiro. Para alguém falir, um outro alguém está lucrando com isso.
E curiosamente, a única dupla com chances de sobreviver no filme é justamente aquela que nunca guardou promessa de afeto. Ryosuke e Sano sempre foram patrão e empregado, a relação sempre foi ordenada pelo valor monetário de cada um. É como se esse apocalipse fosse mesmo uma revelação e, então, Ryosuke enfim entendesse que, no capitalismo tardio, não há espaço para o afeto, para as amizades ou para o amor. Há espaço para fazer mais dinheiro e servir ao sistema, custe o que custar.
Quando Sano leva Ryosuke embora no fim do filme e o incentiva a continuar fazendo o que faz, talvez seja uma das cenas mais grandiosas da atual década. O carro parece não existir no mundo real, a dupla habita um espaço distinto, único, que parece ser o crepúsculo da civilização. É Kurosawa filmando o fim do mundo enquanto um empreendedor e seu assistente seguem a rotina de golpes, quando Sano diz: “Você poderá ter tudo o que quiser, mesmo se esse tudo for algo que possa destruir o mundo”. Na sequência, os rostos de Ryosuke e Sano começam a ser atravessados pela paisagem, como se daquele ponto em diante, o último resquício de humanidade tivesse deixado de existir e sobrasse apenas os dois espectros, os fantasmas do capitalismo. Porque no fim das contas, no atual estado das coisas, parecemos todos correr em círculos diante do fim, tentando guardar o máximo de moedinhas possíveis, como se pudéssemos usar nossos últimos trocados para comprar nossos ingressos para qualquer promessa de salvação.
Sem dica de filme pra essa edição. Vejam Cloud e mergulhem de cabeça no Kiyoshi Kurosawa. Ah, e agradecimentos ao meu amigo Eduardo Bolzan, que editou o texto.
Baita Texto. Uma coisa interessante no jeito do Kiyoshi encenar é como usar a câmera de maneira minimalista, um negocio quase robótico, porem muito preciso no que quer filmar. Esse sentimento de uma espécie de rompimento do tecido tem muito haver com a quebrar que a forma emprega sobre o conteúdo onde esses atos perversos de primeira são abomináveis, mas aos poucos vira um passeio no parque. Tudo e muito cru, cada tiro e um puta estouro, mas isso vira o normal. E aquela coisa que tu já falou: "Os grandes diretores são aqueles que fazem o seu comentário transbordar pela a mise-en-scène" e acho muito cabível esse fala também sobre Cloud
interessante. onde eu posso ver esse filme?