LOCADORA FIORE #13 Verdade e justiça, por John Ford e Clint Eastwood
O Céu Mandou Alguém e Jurado #2 investigam as brechas da promessa que virou tragédia
Robert, Pedro e Kid, três criminosos que chegam a uma pequena cidade do velho Oeste a fim de assaltar um banco. O trio para em uma das primeiras casas do local, onde recebem as boas-vindas de um casal, com direito a café. Parece uma cidade calma e vulnerável, até que Perley, o senhor que os recebeu, veste sua jaqueta para ir ao trabalho e lá está, no peito, uma estrela. É o xerife da região. Ford é direto: as aparências enganam, e quaisquer prejulgamentos que o espectador possa ter ali devem cair por terra de imediato. O Céu Mandou Alguém é um filme seminal para se falar sobre cinema. Não por qualquer inovação técnica, mas pelo desafio lançado ao público: ao longo de 107 minutos, teremos todas as nossas certezas questionadas, e veremos o pior lado dos melhores homens, assim como o melhor dos piores.
O trio segue sua jornada, assalta o banco e foge para o deserto. O xerife, obviamente, não tarda para montar um esquadrão e ir atrás do trio de criminosos. Já no deserto, Robert. Pedro e Kid sofrem para escapar. Todas as rotas possíveis estão ocupadas por oficiais da justiça, esperando para levá-los à lei. Eis que, então, ao decidir fugir deserto adentro, o trio encontra uma diligência com uma mulher em seus últimos momentos de vida, grávida. O trio, então, recebe uma missão: parir o bebê e protegê-lo. São nomeados pela mãe como padrinhos, que deixa como último desejo seu pedido para que os protagonistas cuidem do bebê.
O que se vê a seguir é uma fuga do próprio gênero. Robert e cia escapam de qualquer conflito possível e dedicam seus últimos recursos ao bem estar da criança recém-nascida. Eventualmente, aqueles que fogem das contas por seus crimes passam a ser os protegidos do filme. Ford é didático: até as pessoas mais vis são capazes de atos de amor. No novo cenário, a crueldade não está nos três criminosos, mas nos oficiais da justiça que colocam em risco a missão de proteção. Aqueles que praticavam os atos mais deploráveis agora só são capazes de atos empáticos. O egoísmo cede lugar à empatia, e os mínimos gestos se fazem presentes em cada cena para mostrar o melhor lado daqueles sujeitos.
Um chapéu cobrindo um rosto exposto ao sol do deserto, um compartilhamento de água para o próximo que está sedento, uma ajuda para curar um ferimento ou conduzir um cavalo. Desde a chegada do bebê, Robert, Pedro e William só são capazes dos feitos mais puros e gentis, mesmo que os demais personagens só o enxerguem como foras da lei. E no fim, um milagre: o xerife encontra Robert, o único sobrevivente da aventura, em um bar. Mas aqui, qualquer moralidade que possa os separar cai diante do ato de amor do personagem de John Wayne. Perley agora se vê como tio da criança, também escolhido por Deus para protegê-la. O epílogo do filme se passa no nosso mundo, mas em uma realidade paralela, onde a lei e a moral não estão acima do real, onde o juiz e o xerife são capazes de perdoar e conviver com o criminoso e dar a ele uma segunda chance.
O bom cinema sempre nos questiona. Questiona não só nossas certezas sobre a forma da arte, mas nossas convicções sobre a vida, o mundo e a moralidade. Claro, a forma está lá, afinal, trata-se de John Ford. O fim surrealista só é possível a partir do momento em que Robert perde tudo e lhe resta apenas o amor pelo bebê, e então, reencontra o espírito dos amigos para guiá-lo até Jerusalém, onde parece não haver qualquer vestígio de moralidade. A grandeza de O Céu Mandou Alguém está em seu convite para abdicarmos de nossas certezas e abraçar a complexidade de um mundo no qual gestos de amor podem vir de onde só se espera violência. Quase oitenta anos depois, outro grande cineasta americano, Clint Eastwood, retoma o tema, mas com uma inversão: e se a pessoa acima de qualquer suspeita fosse responsável, mesmo que sem a intenção, de um crime terrível? E se diante da justiça fôssemos obrigados a questionar todas as nossas convicções e lidar apenas com o fato, com a realidade? E assim temos Jurado #2.
No filme, Justin Kemp (Nicholas Hoult) é o homem tradicional americano aos olhos do mundo. Marido devoto, trabalhador honesto, esperando seu primeiro filho após tentativas frustradas. Justin, então, é convocado para ser jurado do julgamento de James Michael Sythe, um ex-membro de gangue com histórico de violência que, supostamente, assassinou sua namorada, Kendall, durante uma briga de bar. O problema é que, no dia em que Sythe supostamente assassinou Kendall, Justin dirigia na chuva e atropelou o que acreditava ser um cervo. E talvez o que seu carro tenha atingido não seja exatamente um cervo
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O que Clint Eastwood faz é anular de antemão quaisquer pré-julgamentos que possamos ter e entregar de cara que o culpado mais óbvio pode ser inocente, e o rapaz acima de qualquer suspeita pode não ser exatamente quem se acredita que ele seja. É um filme que desafia esse olhar do espectador – e de seus personagens – mas também brinca com os conceitos de verdade e justiça. A verdade nem sempre é justa e nem sempre está a olhos nus.
Em tempos de certeza, um manifesto pela dúvida, como disse Pedro Strazza. Um filme que assume, sim, uma verdade, e não a contorna – e faz questão de filmá-la –, mas que está mais interessado em mostrar como cada membro do júri opera não com ciência dessa verdade, mas projetando as suas próprias a partir de suas convicções pessoais, a partir de suas agendas e crenças. E Eastwood não está ali para julgar aqueles personagens, mas para compreendê-los. O homem que quer que Sythe seja preso pelo mal que as gangues fazem à sua vizinhança não tem a razão, mas é possível entender sua dor. O movimento de Clint Eastwood é muito mais para provocar humanismo nos personagens e no espectador, nos intimando a construir opiniões baseadas nos fatos, e não escolher evidências que justifiquem ou embasem uma opinião pré-formada.
E como isso é feito? A partir de um dos mais sóbrios filmes que o cineasta já fez. Um filme que se desenvolve inteiramente no plano e contraplano, sem grandes inventividades, sem arrojo no manuseio da câmera, mas sim na articulação da temática. É um filme de sutilezas – a esposa do protagonista vendada no início, a advogada desolada no contra-plongée com a balança da justiça sendo movida pelo vento, a placa “In God We Trust” no tribunal. E no fim das contas, Eastwood, no auge de seus 94 anos, encerra o filme honrando tudo que foi contado ao longo de quase duas horas: sem veredito. Não há solução fácil, a humanidade é construída em cima de sistemas falhos – tema constante na filmografia do diretor em filmes como Sully, Honkytonk Man, Um Mundo Perfeito, Richard Jewell ou A Mula. O que resta é tentar encarar a realidade e lidar da maneira que foi possível.
No fim, à advogada Faith Killebrew (Toni Colette), só há um caminho: a aceitação de todos os seus erros e o esforço para que a verdade prevaleça, para que a justiça encontre um caminho até ela sem que, com isso, destrua mais vidas. O encontro final entre Faith e Justin não precisa ter resposta, porque o mundo não oferece uma. Em um mundo perfeito, a justiça faria suas concessões. Mas Ford, um artista muito à frente de seu tempo, filmou esse paraíso impossível, enquanto Eastwood, por sua vez, filma a dureza da realidade e investiga suas falhas e brechas. Jurado #2 pode ser resumido na frase “precisamos conversar”.
Ford filma um paraíso com desdobramentos surreais por fazer seu filme na gênese da América, quando tudo era possibilidade e nada era concreto, quando não havia um sistema inteiro estabelecido naquele mundo. Eastwood opera em um mundo situado mais de cem anos no futuro, já com sua carga histórica, política, social e antropológica nas costas. Enquanto Ford imagina (e torce por) uma América diferente e menos bélica, Eastwood lamenta os inevitáveis rumos que uma nação destinada ao fracasso – não financeiro, mas humano – tomou.
Bem, essa foi a edição de hoje. O filme que vou deixar de recomendação é do Kenji Mizoguchi, mais uma vez, que tem um pouco a ver com moralidade e julgamentos, mas no caso, mais focado em classes sociais no Japão Feudal, o brilhante Os Amantes Crucificados (1954). Como de costume, vou baixar o filme e enviar no grupo de Telegram dos apoiadores da newsletter. Considere ser um apoiador, é baratinho! Você entra pro nosso grupo e ganha acesso a textos exclusivos — inclusive a retrospectiva 2024, ou os ensaios sobre cinema político, o espetáculo no cinema de M. Night Shyamalan e a necropolítica no cinema da Juliana Rojas. E tem mais lá! Nos vemos por aí.
Ótimo texto. Ainda na relação Ford/Clint, basta ver Sergeant Rutledge e True Crime.