LOCADORA FIORE #12 Rituais e algoritmos
O quanto a facilidade dos streamings mudou a forma de nos relacionarmos com arte?
Semana passada decidi, enfim, assistir a Evangelion. É uma pendência antiga, que tenho há mais tempo do que vários que estão lendo isso tem de vida. A primeira vez que soube de Evangelion foi em 2004 ou 2005, quando participava de uma oficina de desenho. Logicamente, todo mundo era otaku. Um dia o professor levou um DVD ou VHS (honestamente não lembro) de Evangelion. Vi os dois primeiros episódios enquanto desenhava durante a aula e surtei. E aí veio o problema: como caralhos um moleque de 11 anos faria pra encontrar aquilo?
Eu não falava inglês, não sabia mexer direito na internet, não existia streaming e obviamente eu não encontraria um box da série de Hideaki Anno por aí. Essa dificuldade de encontrar as coisas marcou muito a minha geração. Passei madrugadas em fóruns tentando descobrir como diabos assistir à Saga de Hades dos Cavaleiros do Zodíaco e nunca consegui. A solução só veio em 2008: fui à finada FNAC com meus amigos e encontrei lá um box em DVD da temporada final do anime. Pedi pra minha mãe de Natal e assisti.
Isso se estendeu por várias coisas da minha vida. Conheci o anime Gantz pelo saudoso canal de TV fechada Animax e fui atrás do mangá. Óbvio que não vendia na banca. Descobri comunidades no Orkut sobre o mangá, onde fiz amizade com um tradutor não oficial que morava no Japão. O cara comprava a edição, escaneava e traduzia. Olha o nível de esforço que a galera tinha que fazer pra ler um simples mangá! O mesmo acontecia simultaneamente com Naruto, que também conheci em 2008. Cheguei a ser moderador de uma comunidade do Orkut com mais de 100 mil pessoas, onde eu era o responsável por colocar os links para baixar os episódios em RMVB e as legendas, além de ensinar a galera a juntar os arquivos.
Todas essas memórias voltaram quando enfim dei play em Evangelion pela Netflix e me peguei pensando na facilidade que é você simplesmente assistir às coisas sem precisar descobrir como. Você paga, você vê. Só que essa relação de consumo também é norteada por alguém ou alguma coisa. Se a obrigação de se esforçar para encontrar as coisas me levou a conhecer o mangá de Gantz, a continuação de Ghost in the Shell e animes como X-1999 ou S-Cry-Ed, hoje o “conhecer coisas novas”, cada vez mais, está subjugado pelo algoritmo.
Se perde não só o ritual de se encontrar algo, como também um pouco do prazer por assistir, já que a obra fica, querendo ou não, um pouco mais descartável. E eu acho que esse assunto encaixa muito com dois filmes que revi recentemente: O Chamado, do Gore Verbinski, e O Assassino, do David Fincher. O primeiro é um remake bem honesto do filme japonês, mas nem pretendo analisar ele todo aqui. O que quero pontuar é mais sobre a investigação que a Rachel faz para descobrir o que caralhos é a fita amaldiçoada.
Rever o filme foi uma viagem do cacete. Cara, a protagonista precisa viajar por umas três cidades diferentes pra entrevistar pessoas, ler boletins policiais, laudos médicos e jornais locais. Na era pré internet, esse esforço manual pela investigação não só era maior e mais trabalhoso, mas rendia um filme inteiro. O Chamado passa 80% do tempo nesse trabalho investigativo que, hoje, poderia ser resolvido sem que a protagonista precisasse sair da sua cama. Só pelo telefone ela conseguiria as mesmas informações que, no filme, ela precisou viajar pelo país para encontrar.
O filme, claro, não é sobre isso. Faço apenas a observação pelo choque que foi rever esse filme hoje em dia. Mas O Assassino, do Fincher, eu acho que é um pouco sobre isso sim. Resumo simples do filme: um assassino erra o alvo e sua namorada é mandada para o hospital como punição. Ele entra em uma jornada de vingança para chegar ao mandante do ataque e garantir que seja olho por olho, dente por dente.
Mas o filme não é sobre vingança e menos ainda sobre o ofício do assassino. É sobre ofícios em geral. É sobre toda uma estrutura de mundo que protege quem tem poder e escraviza quem não o tem. O narrador de Michael Fassbender é pouquíssimo confiável, sempre fala sobre sua metodologia infalível para executar os serviços, e sempre é interrompido por algo que quebra suas expectativas. No filme – que aliás, é uma certa releitura do Le Samourai do Melville –, apesar da ansiedade para que o matador complete sua jornada, há muito ócio no caminho. Longas esperas e muitas ações facilitadas pelas tecnologias de hoje.
Se ele precisa de um lugar para executar seu alvo, alugar uma sala do WeWork no prédio da frente é a solução. Se há a necessidade de invadir um prédio, um copiador de chaves comprado na Amazon dá conta do recado. Há uma destruição do ritual do serviço, que é totalmente realizado pela técnica de matar somada às facilitações tecnológicas do mundo moderno. O trabalho se torna algo que excede o exercício do próprio trabalhador, como se tudo estivesse interligado e dependente desses mecanismos de empresas bilionárias e monopolizantes.
No fim das contas, o sucesso ou o fracasso da missão do assassino sem nome de Michael Fassbender está menos nas mãos da sua capacidade de execução e mais nas mãos das ferramentas que possibilitam esse trabalho ser finalizado. É como assistir a qualquer coisa no streaming hoje. Sei que muitos de nós estão em fóruns como o Karagarga, em drives como o Cine Coletivo e por aí vai. Mas para a maioria das pessoas, ver um filme depende única e exclusivamente de sua disponibilidade nos principais serviços de streaming do mercado.
No fim, o assassino constata sua insignificância nesse mundo, percebe ser apenas mais um escravo do capital e decide tocar o foda-se. Não mata seu alvo, apenas o ameaça e foge para viver em sua casa com sua namorada, agora recuperada do espancamento. No fim, percebe estar diante de um sistema tão grandioso que nada pode fazer se não abaixar a cabeça e abraçar a oportunidade de (sobre)viver que lhe é ofertada. A cada passo da vingança, o trabalho do matador fica mais difícil, conforme ele passa de trabalhadores tão explorados quanto ele e chega a quem manda nas coisas, na burguesia de fato.
David Fincher passa boa parte do filme reiterando a não confiabilidade do narrador, e concretiza isso na grande cena do encontro entre o protagonista e o mandante do crime inicial. “Vê como foi fácil chegar até você? Então me deixa em paz aí se não eu volto pra te matar”. A afirmação é, em partes, verdade. Porque se toda a oferta de produtos e serviços facilita o dia a dia do personagem, no fim das contas ele chega a uma barreira quase intransponível, que é a quebra do sistema. Só foi possível chegar ao “chefão” porque o sistema tem plena convicção de que todas essas ferramentas estão aí, mas que não trabalharão contra o capital. Assim como o assassino percebe não ter liberdade alguma se não abaixar a cabeça e fugir, o grande público não tem muita opção senão seguir o que o algoritmo nos recomenda. A Amazon, os bancos e o WeWork possibilitam que o matador faça suas gracinhas, mas ele será eternamente um escravo de quem é intocável pelo poder do capital. O público é livre para assistir ao que quiser, contanto que esteja em cartaz no cinema da sua cidade ou no streaming que você paga para consumir.
Tanto para o assassino de Fincher quanto para qualquer um que queira assistir um filme/série, as escolhas e gostos são definidos pelas empresas que estão na mão de quem manda no mundo. Uma vez, a ótima crítica americana Kristen Yoon-soo Kim disse: “Críticos que não são cinéfilos e portanto não têm curiosidade sobre filmes acabam tendo gosto definido por algoritmo, e esses são os críticos que os estúdios preferem”. É esse o crítico, o cinéfilo e o “consumidor” que a empresa quer. Aquele que só vê o que lhe é ofertado, que não busca, que não vai atrás de algo que não está sendo oferecido na nossa cara.
Em seu livro O Desaparecimento dos Rituais, Buyng-chul Han fala sobre como a modernidade e suas facilitações e costumes eliminaram diversos protocolos e cerimônias que eram essenciais não só para formação cultural, mas para a existência de comunidades como um todo. A facilitação extrema de acesso a conteúdo (limitado, claro) é parte disso. Não há glamour no ofício do Assassino, assim como não há sensação de descoberta ao ver um filme sugerido pela Netflix baseado nos gostos que o algoritmo determinou que o assinante tem
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É um processo de destruição da investigação, da descoberta, que nos mantém em inércia. Vamos consumir o que vier até nós. Qualquer curiosidade será desencorajada e ceifada. Se o filme não está no streaming da vez, ele não existe. E por isso, é tão importante continuar falando sobre obras que fogem dessa corrente, que estejam fora dessa lógica. É importante reconhecer e quebrar esse fluxo, mesmo sabendo da impossibilidade de, individualmente, mudarmos essa realidade. Assim como o matador de aluguel do filme percebe e decide, como é o que lhe cabe, ir viver como é possível, na sua casa na República Dominicana, ao lado da namorada, em vez de continuar a empilhar corpos. Ah, e a ironia: David Fincher fez este belo O Assassino justamente para a Netflix.
A dica da Locadora hoje é outra pérola que saiu do streaming. Eu costumo bater bastante nas plataformas, mas não nego que vez ou outra saem filmes interessantes, e um deles é Sem Remorso. O filme de 2021 do Stefano Sollima (sim, filho do próprio) é o melhor thriller de ação que vi Hollywood produzir na atual década e um dos filmes que melhor entende seu protagonista como figura de gênero. Mas recomendo esse filme também por haver uma questão de sistema impenetrável do qual o personagem principal (Michael B. Jordan) deve escapar.