LOCADORA FIORE #11 O fantasma e o cinema japonês
Como surgem os espíritos nos filmes de Takashi Shimizu, Kenji Mizoguchi e Kiyoshi Kurosawa?
A forma como os japoneses usam fantasmas em seu cinema sempre me fascinou. Na verdade, o fascínio é até anterior à minha cinefilia. Acho interessante desde criança, quando assistia a algum anime que tinha alguma forma de fantasma. O meu favorito, que já falei por aqui na newsletter, Yu Yu Hakusho, é um deles. Eu cresci tendo fantasmas como figuras de medo, que chegam para assombrar e te ameaçar, mas a verdade é que crescendo a gente entende que eles são meio para discussões muito mais variadas em toda forma de arte.
Recentemente assisti a Ju-On, de Takashi Shimizu, e o filme é uma antologia de histórias de casa mal assombrada. Eu gostei bastante, principalmente pela forma como os fantasmas são abordados. Aqui, é aquela construção mais direta, o fantasma é uma figura a se temer. O curioso é que os fantasmas de Ju-On não são dispositivos que possibilitam a ação, o suspense ou algo do tipo. Eles são quase como uma maldição. O fato de um personagem ver um fantasma já é o destino em si. Quem vir um fantasma, muito em breve, morto estará. Há, claro, um temor pela possibilidade de os ver, mas estar diante de um não faz com que os personagens temam e lutem por suas vidas, os faz apenas aceitar seu destino, como se a força sobrenatural fosse algo tão acima da nossa compreensão e poder que nos restasse apenas aceitar a morte. Os fantasmas são, no fim das contas, a morte em si.
Mas me interessa também como os fantasmas ganham tons variados no cinema japonês. O que considero o grande filme do grande cineasta da história do Japão, Contos da Lua Vaga, de Kenji Mizoguchi, é um que tem seu fantasminha. No filme, o fantasma é quase como uma criação do imaginário de um dos personagens. Sua avareza o leva a projetar uma vida de glórias, de status social no Japão feudal, e assim surge o fantasma para se alimentar dessas esperanças e, então, chocá-lo com a realidade. É uma presença sedutora, que vampiriza os delírios de grandeza do homem.
No filme, a transição do que é real para o que é fantasia acontece com uma naturalidade que espanta. Mizoguchi está sempre filmando os dois com o mesmo esmero, facilitando a confusão dos personagens que não diferem o espiritual do material – e assim, dando impacto às revelações. É como se o mundo espiritual fosse mesmo o nosso, a única diferença é que ele materializa (ou apenas projeta) o fantástico no ordinário. O Rio Sanzu pode ser qualquer rio que se cruze, contanto que você tenha sonhos a alimentar e, com isso, evoque o sobrenatural.
É como se toda a mise-en-scene do filme fosse reflexo da mente de seus personagens, mas não em um sentido de um ambiente imundo refletir uma mente conturbada, e sim no sentido de a fantasia se apresentar quando o personagem estiver a delirar. É uma mise-en-scene que sempre muda seu plano de atuação, indo do material ao espiritual sem precisar construir ou destruir espaços, apenas os ressignificando. Seja pela luz, pelo enquadramento ou por uma presença. Os fantasmas são nada mais do que a expressão máxima dos desejos impossíveis do homem que quer ser samurai na sociedade da impossibilidade de ascensão social.
E falando em um espaço imundo refletindo um mundo inteiro em crise, Crimes Obscuros do Kiyoshi Kurosawa é o filme de fantasma a se abordar. Vi pela primeira vez um dia desses (inclusive, está na MUBI). No filme, um policial começa a investigar uma série de assassinatos e começa a suspeitar de que ele mesmo possa ser o assassino, mesmo que não se recorde de ter cometido crime algum. O interessante aqui é como Kurosawa constrói uma mise-en-scene sempre em degradação. Não só pelos constantes terremotos que testam as estruturas da cidade, como pelas ambientações internas sempre consumidas por poeira e mofo. O próprio apartamento do protagonista, Noboru Yoshioka, é um lugar um tanto quanto emporcalhado. Nesse caso, o fantasma da menina de vestido vermelho não surge como algo que pertence àquele lugar. Na verdade, o fantasma é a figura mais deslocada desse mundo de sujeira, é um ser que traz pureza e até alguma gentileza.
No filme, o fantasma chega para, com sua essência sobrenatural, ajudar o protagonista a expurgar seus próprios demônios. Claro, inicialmente há o temor, o pavor de se encontrar algo sobrenatural. Mas Kurosawa subverte essa dinâmica ao nos acostumar com a presença do espírito. O que vem a seguir é a retratação do mundo físico como um purgatório em vida, onde todos sofrem por seus traumas e erros e precisam de algo metafísico para ajudá-los a lidar. O fantasma de Crimes Obscuros, então, não é uma maldição como o de Ju-On, mas uma espécie de Deus Ex Machina que permite aos personagens lidarem com suas questões. É como se o mundo real já fosse o inferno, e os fantasmas fossem presenças vindas de um lugar que não diria que é exatamente um paraíso, mas um espaço de mais tranquilidade e equilíbrio, e guiassem os personagens por essa realidade dura de lidar.
O filme, vale lembrar, já foi concebido em um Japão em crise social – que muito se acentuou de 2006 para cá, vale dizer. É o fantasma que chega para libertar dos tabus, trazer revelações e esclarecimentos. É o fantasma que pega Yoshioka pela mão e o faz encarar seus demônios para, quem sabe, enfim encontrar a paz. É a presença mística, fantástica, que não é exatamente um anjo da guarda, mas que abre os olhos do protagonista para um passado que ele não conseguia assimilar e superar.
Não sou nem de longe especialistas em fantasmas e muito menos em fantasmas japoneses, mas não consigo não me fascinar e querer falar sobre o tema tendo visto esses filmes recentemente. O fantasma na cultura japonesa parece ser muito mais maleável, e sempre reflexo de quem é a pessoa com quem ele encontra. Mas se na obra de Takashi Shimizu ele surge como maldição, nas de Kenji Mizoguchi e de Kiyoshi Kurosawa a abordagem é outra. Contos da Lua Vaga traz o fantasma como algo inerente ao mundo material, reflexo da mente humana e de nossos sonhos impossíveis, enquanto Crimes Obscuros traz o fantasma como uma figura externa ao espaço, mas que não o torna mais sombrio, e sim alivia a escuridão e oferece alívio pelo confrontamento dos tabus.
No Japão, os fantasmas são muito mais presentes na cultura do que na maioria dos países ocidentais. A mitologia do país já tem diversos espíritos como parte de seu folclore. Claro que no Brasil temos a Mula sem cabeça ou o Saci, mas no Japão, essas figuras parecem mais integradas à cultura, ainda presentes na arte, na crença e na tradição. Talvez por ser um país que precisa inclusive lidar com a morte de maneira muito diferente de uma nação de cultura ocidental. Um país que tem até mesmo rituais como o seppuku diretamente ligados à morte.
Enfim, já está saindo muito da minha alçada. Vamos para a recomendação da semana: O Fantasma de Yotsuya (1959). No filme de Nobuo Nakagawa, um samurai decide trair a família em troca da ascensão social (olha ela aí, mais uma vez) prometida por um novo casamento. O plano funciona, mas sua esposa volta como fantasma para levá-lo direto para o inferno. O filme já está no Drive para todos os apoiadores da newsletter!
No Mizoguchi, impressiona como se passa do território dos vivos para o dos fantasmas com tanta naturalidade. É talvez mais natural do que sobrenatural. Embora a mulher-fantasma pareça levitar enquanto anda.