LOCADORA FIORE #10 Sabote este filme
Quando o cinema sabota expectativas, demandas e franquias
Seja intencional ou não, uma sabotagem sempre é um negócio divertido de se ver. Quando um filme, série, jogo ou até álbum entende as expectativas e se apresenta como algo completamente oposto a elas, sempre sai alguma coisa interessante. Principalmente no estado de Hollywood de hoje, essas sabotagens surgem quase como um desabafo dos seus diretores sobre o atual estado das coisas – sejam eles grandes ou péssimos cineastas. O mais recente, que é recheado de defeitos mas ainda acho bastante interessante, é Coringa: Delírio a Dois.
No novo filme, Todd Phillips teve, supostamente, controle criativo total sobre a produção, e sequer permitia que o pessoal da Warner e da DC Studios se aproximasse muito do set. Assistindo ao filme, fica claro o motivo. Coringa 2 é contra tudo que o primeiro cristaliza, como falei na crítica do filme – que também saiu aqui na Locadora. Vemos a inversão tanto na forma, com o drama que busca a realismo pela violência sendo substituído pelo musical e pela fantasia, quanto no conteúdo resultante, já que a obra original de certa forma glorificava e construía um mito ao redor do protagonista, enquanto o segundo faz o próprio personagem principal admitir a farsa que é.
Me lembrou um pouco o que Lana Wachowski fez em Matrix Resurrections, filme que nem Lana, nem sua irmã, Lily, planejavam realizar. A dupla não tem obtido muito espaço na indústria e sequer parece interessada em produzir coisas novas. O mundo e o cinema são outros, há essa busca incessante pelo realismo, enquanto o cinema das Wachowski sempre foi assumidamente farsesco e espetaculoso. Matrix 4, então, é uma resposta a isso, é um filme que mapeia toda a lógica industrial dos blockbusters contemporâneos e vai na contramão.
A galera curtia Matrix pelos protagonistas masculinos fortes? Toma a Trinity sendo a personagem chave do novo longa. O kung fu com coreografia de alto nível marcou uma época? No novo filme, Neo se recusa a entrar em qualquer combate corpo-a-corpo. Matrix Revolutions apontava para uma utopia pós revolução com a destruição do sistema vigente? Resurrections chega pra dizer que mesmo depois de morto, Neo continuará trabalhando. É um filme que não só renega os elementos visuais que animaram os fãs para ver a continuação, como também estabelece novos parâmetros, destruindo os pilares da franquia – ou melhor, os trazendo como uma farsa.
O primeiro plano do filme já traz essa brincadeira, quando vemos uma imagem que, em alguns segundos, se revela uma falsa-imagem: os personagens que vemos na verdade são apenas reflexos em uma poça no chão. Até quando aciona mitos do universo, Lana Wachowski o faz reiterando a farsa. Precisa ter Morpheus no filme? Então Lana foi atrás de um novo ator que será quase como um ctrl v do personagem, e não o original. Porque assim como o Morpheus original está morto no filme, a franquia também está. Matrix é fruto de seu tempo, e não há como resgatar aquela franquia de forma anacrônica sem comentar sobre a atualidade, que é o que Resurrections tira de letra.
Outro caso que gosto muito é o Death Note de Adam Wingard. A adaptação de 2017 do mangá de Tsugumi Ohba produzida pela Netflix assume a impossibilidade de contar, nos Estados Unidos, uma história essencialmente japonesa. No mangá – e no anime –, o primeiro encontro de Light Yagami com o demônio Ryuk é o que um incel imagina que acontecerá ao encontrar um demônio, soltar uma frase de efeito como “haha, eu estava esperando por você!”. Já no filme de Wingard, que também traz um personagens com muitos códigos do incel, o primeiro encontro traz a exata reação que um jovem do tipo teria ao encontrar uma força sobrenatural além de sua compreensão, o desespero.
Wingard entende a inadaptabilidade do material e encara tudo como uma grande piada, obviamente frustrando os sonhos molhados dos adolescentes que só queriam ver a trama de um jovem psicopata assassinando pessoas por acreditar ter um grande senso de justiça. Para Wingard, somente um incel que quer ter poder para perder a virgindade tomaria tal atitude, e é justamente essa a abordagem para o personagem de Natt Wolf. Não é por acaso que a primeira reação de Light ao descobrir seus novos poderes é correr para contar para a gatinha da escola e, assim, começar um novo romance.
O que os três filmes têm em comum não é apenas a sabotagem e a subversão das expectativas ou do material original, mas um ímpeto de trazer algo que quebre expectativas, que se permita brincar com o material base e, assim, criar algo novo e cheio de frescor. Os três filmes citados têm suas qualidades e defeitos, mas são obras que arriscam mais do que qualquer filme do MCU jamais arriscou. São filmes que sabem caçoar do material original, mas também entender e trabalhar em cima de suas características definidoras. Se alguém imaginou que a Netflix faria um suspense sério sobre um adolescente que tem um caderno que permite matar qualquer pessoa e é investigado por um detetive esquisito que não toma banho, essa pessoa não entendeu que esse tipo de lógica pode funcionar na linguagem dos mangás e animes, mas que é inconcebível para o público americano que anseia por realismo.
Quando temos filmes feitos apenas para enaltecer um material original, o resultado geralmente é algo insosso como Ghost in the Shell, de Rupert Sanders. O filme tenta recriar plano a plano algumas das sequências emblemáticas da animação japonesa, mas Sanders entende o material base com o qual trabalha muito menos do que Wingard. As próprias imagens da protagonista Major, no filme japonês, tendo sua silhueta desenhada nas sombras com a cidade no fundo, é uma imagem perfeita para falar sobre essa despersonificação das pessoas em uma distopia tecnológica. Para Sanders, é apenas a oportunidade de botar a Scarlett Johansson em uma janela com um plano bem aesthetic.
É lógico que tanto Phillips quanto Wachowski e Wingard sabiam o que estavam fazendo e esperavam pela repercussão negativa de seus projetos. Mas a graça é justamente essa, é tomar a liberdade de fazer um filme não pensando nas expectativas, e se permitir criar algo novo, mesmo que erre no caminho – e vale dizer, Coringa 2 erra consideravelmente mais do que Death Note e Matrix Resurrections. Esse desejo por ver as coisas como elas eram parte de uma nostalgia muito negativa que dominou o nosso tempo. Uma nostalgia que encara arte apenas como produto. Não somos mais espectadores de um filme, somos consumidores, e o consumidor quer ver o que ele pagou para ver. Não pode mexer com o brinquedo da criança, porque se mexer, ela chora.
O curioso é que pessoas que reclamam de adaptações ou continuações que não são fiéis geralmente amam O Poderoso Chefão ou Scarface, (bons) filmes que alteram bastante a origem. No caso do filme de Coppola, o livro de Mario Puzo, no caso de Scarface, o longa original de Howard Hawks. Em uma indústria que trata tudo como produto e cria demandas para antever qual enlatado o público vai querer devorar em seguida, fazer um filme que sabote expectativas e te desafie a ver algo minimamente corajoso é, no mínimo, digno da nossa atenção. Mesmo que o resultado seja, vez ou outra, um filme medíocre como Coringa: Delírio a Dois.
Bem, hora da recomendação da semana! O filme que eu queria passar hoje é o Rei Lear do Godard. Não é nem de longe um de seus melhores, mas é um experimento de sabotagem bem interessante. Salvo o engano, o áudio que abre o filme é uma gravação de um produtor cobrando o Godard. Porque o velho prometeu uma adaptação de Shakespeare, e seu filme não é nada se não uma investigação das diferenças linguísticas entre povos, um estudo do próprio Godard sobre a língua inglesa. O link pra baixar o filme vai estar no grupo de apoiadores!
Acho que um caso interessante de quebrar de espectativa e o The Last Of Us 2. Um jogo que dividiu a comunidade, e que todo mundo que esperava mais uma aventura feliz com o Joel, já no início se deparar com a morte do seu querido personagem que não é nem de longe o herói que todos achavam que era. Ele ainda e um pessoa que mudou, evidentemente, mas isso não apaga o que ele fez nesses 20 anos como mercenário prós Vaga-lumes ou que fez com os médicos no final do primeiro. Então tem muita gente que vai nessa ideia do "tecnicamente inquestionável, mas a história em si e muito ruim, pois mataram o Joel de maneira covarde e sem respeito ao personagem". Sendo que esse e exatamente o plano do jogo, e lembra pro jogador que ninguém e só bom ou só mal, e sim que todos são cinza, e o resto do jogo e sobre essa dicotomia. Como ainda e um jogo, e se no cinema, filme ainda são produtos de mercado, o jogo ele e ainda mais assim, pois ele custa uns 350 reais, então ele tem que me atender pro completo. E o Drukman pouco se importa com o que você quer no jogo, e sim o que ele quer conta e pronto acabou. Acho um caso interessante dessa ideia de farsa e quebra de espectativa.
Ótimo texto, Fiore!