Crítica | Cidade; Campo (2024), de Juliana Rojas
Dois momentos interessantemente distintos, mas mal justapostos
Cidade; Campo é um filme de dois momentos bem demarcados por Juliana Rojas. Uma mulher do campo que vai viver o luto na cidade após uma tragédia análoga às de Mariana e Brumadinho; o casal da cidade que vai viver o luto no campo após a morte do pai de uma das mulheres. Com essa separação em dois atos, a diretora analisa a relação dessas três personagens com os espaços onde circulam, que não são seus lares, mas carregam algo de seus passados.
A primeira parte é focada em Joana. Recém chegada na cidade após a lama destruir a fazenda onde morava, a mulher da terceira idade precisa agora se reinventar e encontrar um novo sustento e, na correria de São Paulo, encontrar alguma forma de lidar com a perda de sua terra. O filme, então, se debruça sobre a jornada da mulher que precisa se adequar a um novo espaço, com uma nova lógica social, um novo ritmo, um novo espírito. Desse tensionamento entre a mulher que segue seu próprio ritmo e a cidade que não para para ninguém, surgem os melhores momentos de Cidade; Campo.
Em seu texto “As grandes cidades e a vida do espírito” (1903), o sociólogo alemão George Simmel fala sobre como nas cidades grandes, a economia monetária sempre foi o denominador comum da estrutura social e sobre como há uma intensificação dos estímulos nervosos pela quantidade incontrolável de coisas, cores e sons que se sucedem. E isso é bem estabelecido por Rojas ao vermos que Joana não tem opção senão entrar no mercado de trabalho e pela forma como observa a complexidade do que a cerca não com curiosidade nem desdém, mas com angústia pela incapacidade de se afeiçoar e participar desse mundo.
O mero ato de parar e conceber o espaço onde se habita é algo difícil de se fazer em uma cidade grande. Como Rojas mostra, o indivíduo é sempre convidado a abstrair da própria realidade. Em uma cidade grande, somos soterrados de luzes e propagandas que parecem nos deixar dormentes para o que há de humano nas ruas — são espaços extremamente opressores para os moradores de rua, que não só rejeitam como escondem sua existência.
Mas é também daí que surgem alguns dos primeiros problemas do filme. Se quando Joana senta na laje do prédio para observar a vizinhança e mapeia as rotinas de seus vizinhos, surge uma das mais interessantes cenas do filme – o estudo da comunidade que não dialoga, os vizinhos que não se comunicam nem se encontram, as pessoas que apenas existem para trabalhar –, quando Rojas leva a narrativa em direção à crítica à precarização do trabalho, o resultado é insatisfatório.
As críticas à uberização do trabalhador e esforço pela desmobilização da classe são retratados sempre de forma simplória, sem um aprofundamento, sem levantar questões novas. É tudo meramente observacional. Não há um momento de reflexão, o capitalismo em São Paulo não é posto em crise. Soa como uma abordagem um tanto genérica – ao meu ver, incomum no cinema de Rojas, que aborda tão bem a temática em Sinfonia da Necrópole e Trabalhar Cansa. Por outro lado, nesse primeiro segmento destinado à cidade, interessa como o lúdico se torna o escape para essa realidade cinzenta e opressiva. As imagens do cavalo Alecrim surgindo no meio de uma rodovia ou a cena musical como rito de despedida funcionam pelo estabelecimento anterior da cidade de São Paulo como um lugar impróprio para o sentimento, que só é possível pela abstração da realidade que cerca Joana.
Em Cidade, é esse retrato mais afastado da frieza da grande metrópole que gera os bons momentos. Quando o filme tenta mergulhar demais em questões pessoais, acaba dependendo de um texto bastante rígido. Não é suficiente mostrar o karaokê como escape da rotina cansativa do trabalhador, é preciso que uma das personagens mastigue isso para o espectador enquanto a câmera fecha um close-up em seu rosto e grite para o público o que está sendo dito ali. “Entendeu que é sobre encontrar conexões no meio da selva de concreto? Não? Vamos insistir!”. Como se Rojas, uma diretora que filma tão bem, não estivesse tão convicta da força das próprias imagens.
Mas é em Campo que o filme, infelizmente, desanda. Pois se o mergulho no lado pessoal é o calcanhar de Aquiles da primeira parte, a segunda é inteiramente dedicada a isso. Acompanhamos Flávia e Mara, casal que abandona São Paulo para ir ao interior após o pai da primeira falecer em seu sítio. Aqui, por mais que haja algum estudo do que acontece na região, que parece fadada à destruição – a terra não é mais fértil, os animais não têm mais a mesma saúde e mal conseguem ter prole –, o foco é mesmo na forma como Flávia lida com a perda do pai e como ela e Mara se relacionam.
Em Campo, as relações são tão individualizadas que sobra pouco para falar sobre a situação do interior do país. Se a primeira metade estabelece as contradições entre os ritmos de cidade e campo e os impactos das tragédias causadas por empresas como a Vale, o segmento estrelado por Mirella Façanha e Bruna Linzmeyer não demonstra interesse algum em aprofundar essas discussões. É como se o filme rumasse para outra direção, e tudo que fora apresentado em Cidade fosse esquecido, apagado.
A destruição daquelas terras é apenas a construção de um terreno no qual o drama, o terror e a fantasia possam emergir. E quando o fazem, também com certa dificuldade de construir qualquer ponte com o segmento Cidade ou até mesmo de potencializar o que acontece em Campo. O filme volta a parecer uma coleção de momentos um tanto genéricos, comumente abordados no cinema, mas sem sua própria marca. Se em Cidade, os gêneros são um escape da realidade, em Campo, eles são meros recursos para gerar tensão. São momentos nos quais o filme mergulha, sim, no luto, mas não mais aproveita a potencialidade do espaço. Que força tem a cena final, da “despedida”, para além do que acontece? O que é mostrado daquele lugar que dê potência para os personagens em volta da fogueira? Para mim, nada.
Se no começo do texto digo que Cidade; Campo é um filme calcado principalmente na relação de suas personagens com o espaço, é isso que mais falta ao segmento Campo. Flávia e Mara têm suas questões de relacionamento e familiares para responder, e o campo em si nada mais é senão um palco para outras ideias de Rojas. Sua relação com a terra onde pisam não é desenvolvida – nem por texto, nem por imagem –, e aqui, a “trama” fala mais alto. O que importa é sempre o que acontece, e não como acontece.
Dessa maneira, Cidade; Campo me soa como um filme que falha na justaposição de seus dois momentos. O que ambos têm em comum é a migração e o luto, mas não há um diálogo desenvolvido que percorra esses dois segmentos. Cidade acerta quando conflita sua protagonista com o espaço e derrapa quando cai no genérico ao falar sobre trabalho, enquanto Campo não consegue discutir nada para além das fronteiras do sítio do pai de Flávia. É uma segunda metade tão afetuosa a nível pessoal quanto inócua em termos formais, espaciais e sociais.
Pqp eu sendo responsável por uma pequena parte da formação crítica de Matheus Fiore