Crítica | Ainda Estou Aqui investiga seus espaços para o encontrar peso da ausência
Novo filme de Walter Salles se enrola ao falar sobre trabalho de Eunice Paiva, mas acerta no drama sobre destruição familiar
Ainda Estou Aqui, o novo filme de Walter Salles, fala sobre as cicatrizes abertas da ditadura a partir de uma investigação de espaços. Em vez de falar frontalmente sobre os problemas da época, o diretor de Central do Brasil aborda a perseguição do regime militar a partir do impacto dos crimes do Estado na vida de quem era totalmente alheio à batalha política do período. E com isso, se torna também, de certa forma, um filme que escolhe ser alheio às discussões políticas.
Quando a família Paiva está reunida, o que vemos é um festival de referências à cultura da época. As músicas e pôsteres de filmes estão lá não só para desenhar sons e embelezar paredes, mas para dar vida ao lugar. A casa dos Paiva está sempre cheia, o jantar está sempre na mesa, os amigos estão sempre presentes com seus charutos e cigarros. Há vida no ambiente. O grande interesse de Salles é estabelecer o choque entre esse lar antes e depois do desaparecimento de Rubens, sequestrado e assassinado pela ditadura em 1971. É no choque da troca da música pelo silêncio que Ainda Estou Aqui encontra sua maior força dramática.
O ambiente sem Rubens vai se tornando gélido e vazio. Salles tem muito mais interesse em falar sobre a ausência pela construção e destruição do lar do que pelos personagens de maneira direta. E não é por acaso, o foco do filme é em Eunice, a mãe que precisa cuidar das cinco crianças e sustentar o seio familiar durante a eterna espera pelo retorno do marido. Salles até ensaia expandir esse escopo, mas o faz de maneira contida. A empregada que cuida da casa, por exemplo, só manifesta suas próprias questões quando lembra que precisa receber seu salário. O trabalho posterior de Eunice em defesa dos indígenas – que sofreram um verdadeiro genocídio durante a ditadura, vide os relatórios da Comissão da Verdade – só tem espaço em lettering projetado na tela preta. Ainda Estou Aqui não tem muito espaço para refletir sobre o impacto da ditadura para além da família Paiva.
Mas nessa chave, o trabalho é bem feito desde o início. O primeiro plano já estabelece a tensão de uma família que tenta performar normalidade diante da destruição do tecido social do país: Eunice boia no mar do Rio de Janeiro enquanto um helicóptero rasga o céu e anula o sentimento de tranquilidade que a personagem de Fernanda Torres sentia. Qualquer som mais brusco de veículos ou sirenes já é um alerta do horror que pode estar à espreita. É sempre nesses detalhes que Salles encontra a força de seu filme. São os momentos em que o diretor apresenta a alienação de Eunice apenas para rompê-la na sequência. Quando os militares enfim chegam para buscar Rubens, há um impacto, mas não uma grande surpresa, pois o casal sabia que estaria sujeito a essa situação. Mas não é uma resignação, é um lamento por saber que aqueles tempos dourados tinham seus dias contados.
Justamente por ter bastante ciência de suas limitações e possibilidades que Salles triunfa nesse estudo de espaços de Ainda Estou Aqui, mas isso não furta o filme de ter seus problemas. A montagem parece não acompanhar essa harmonia que o som e a imagem evocam. Desde a primeira parte da trama já há algumas cenas prejudicadas por cortes bruscos, que encerram o plano antes que a imagem seja plenamente aproveitada, antes que tenha se extraído o máximo daquelas composições. A sensação de harmonia quebrada com o sequestro de Rubens, portanto, perde potência. Mas é no clímax triplo que a coisa desanda, em um ponto no qual, indeciso entre qual cena escolher para encerrar o filme, Salles coloca… Todas. A sequência de três finais tira não só a força do estudo de espaços, já que não há mais ambientes a se investigar no terço final, como também leva o filme para uma direção que não pertence à narrativa estabelecida anteriormente.
A ênfase no trabalho de Eunice pós ditadura é algo que soa quase como um mea-culpa: na impossibilidade de contar as histórias das minorias chacinadas pela ditadura, reitera-se o trabalho que a protagonista fez, na vida real, para apoiá-las. Só que esse trabalho inexiste no filme, surge apenas como aceno para o espectador, em um ímpeto de homenagear Eunice Paiva e torná-la um símbolo, mas sem dar tempo de tela a essa luta que foi tão importante para sua carreira. Parece que há um esforço muito grande para separar figuras como a de Rubens Paiva de guerrilheiros. Como se o filme dissesse “veja, a ditadura não perseguiu só esses revolucionários malvadões, mas pessoas ‘de bem’ também!”.
Há, portanto, não só um processo de alienação política, mas de afastamento da causa revolucionária mesmo. Ainda Estou Aqui só se preocupa com a ditadura quando ela invade a classe média. No fim, o aviso que chega com o tom “cuidado para não repetir os erros do passado” parece cínico por não considerar nenhum dos pontos que levou o Brasil à ditadura em primeiro lugar. E novamente: se o filme fosse totalmente focado apenas em Eunice, Rubens e a família, tudo bem. Não é. O filme faz questão, em seu ato final, de tentar expandir o escopo e falar sobre perseguições a terceiros. Mas com esse já citado olhar afastado é burocrático. O lettering projeto no fundo preto e nada mais. Uma nota de rodapé, como é a vida da empregada que precisa pagar as contas. No fim, Eunice não está mais alienada como esteve na cena da praia que abre Ainda Estou Aqui, mas o espectador estará. É como se a própria Eunice tivesse noção do quão profunda é a marca da ditadura e seus efeitos em minorias, mas o filme, de forma deliberada e calculada, fizesse questão de tornar tudo isso uma nota de rodapé e nada mais.
Uma crítica que discordo é a de que o filme tenta separar o Rubens dos guerrilheiros. Ele mesmo que se coloca nesse lugar, provavelmente como forma de proteger a família. depois que voltou do exílio ele não se envolveu com a luta armada, mas ele e o grupo ajudavam quem podiam, fosse dando abrigo ou entregando as cartas. não uma ferramenta do filme, mas um medo do próprio Rubens, como se alienar a família do que fazia escondido pudesse os proteger do que poderia ocorrer.