LOCADORA FIORE #7 O canto do cisne nos cinemas de Sganzerla, Ford, Cimino, Godard e Mizoguchi
Os fins de algumas das mais incríveis filmografias da história do cinema
Acho muito bonito quando acompanhamos a filmografia inteira de um cineasta. Todo bom filme retrata as visões de mundo de seu diretor, e é um exercício muito belo acompanhar essa evolução pessoal e artística de um autor conforme os anos se passam. Claro, para filmografias mais curtas, isso é mais simples. Mas mesmo nas longas, não tendo visto todos os filmes, ainda podemos fazer análises muito interessantes sobre de onde um artista partiu e até onde ele chegou.
Peguemos O Bandido da Luz Vermelha (1968) e O Signo do Caos (2003), a jornada de Rogério Sganzerla, um dos grandes cineastas da história do Brasil, passa por muitos momentos. Começa já na ditadura anunciando o fim do mundo. “O terceiro mundo vai explodir”, grita um dos personagens no meio da projeção. Mas ao longo da carreira, o caos de Sganzerla foi ganhando elegância, refinamento — sem nunca abandonar a sujeira muito valorizada pelo diretor. De cineasta rebelde, ele se tornou um iconoclasta, alguém mais maduro e assertivo em sua linguagem. O Signo do Caos é um filme de investigação, do legado e das transformações pelas quais o cinema passou. É um anti-filme testamento de um dos grandes diretores do nosso país. Como quem almeja deixar como legado o eterno convite à reflexão sobre o cinema, uma implosão de tudo que o precedeu, uma mistura de desencanto e fascínio.
Outra filmografia incrível de lançar um olhar é a de John Ford. Nem de longe vi todos os seus filmes (afinal, filmou mais de uma centena), e também não vi o primeiro. Mas é possível provocar discussões interessantíssimas sobre algumas transformações pelas quais sua visão de mundo passou. O diretor de Stagecoach (1939) já não era o mesmo em Como Era Verde Meu Vale (1941), longa que leva Ford a um caminho mais conciliador, que pensa menos na guerra e mais na vida fora dela. Um diretor que não lamenta a morte, mas cultua a vida. Já em O Céu Mandou Alguém (1948), essa transformação segue, e aqui, o diretor vilaniza justamente quem está em busca da violência, mesmo que este seja um agente da lei.
Tudo isso culmina em seu último filme, Sete Mulheres, de 1966. Mesmo que visto como um cineasta conservador – ideia estapafúrdia para qualquer um que já viu mais de três filmes de Ford –, o diretor sempre buscou romper com preconceitos e ideais de sua época. Um filme na qual oito mulheres são tiradas de sua zona de conforto e precisam se adaptar à nova realidade durante um combate na China. Sobrevivem as que se adaptam, e a mais adaptável de todas é também a mais menosprezada pelos olhares julgadores da época. Ford encerra sua filmografia reafirmando a necessidade de se aceitar e abraçar as contradições e complexidades da vida. A resposta não vem de quem tem poder, de quem tem origens aristocráticas, vem de quem nunca foi ouvido.
Sete Mulheres tem um diálogo muito evidente com o cinema de Michael Cimino. O diretor de O Franco Atirador (1978) tem, para mim, a melhor filmografia dos últimos sessenta anos no cinema americano. Assim como Ford encerra seu cinema com uma cena que beira o surreal, Cimino encerra seu primeiro com uma cena extremamente surrealista. Em O Último Golpe (1974), dois amigos vividos por Clint Eastwood e Jeff Bridges vivem aventuras incríveis conforme aplicam golpes aqui e ali. no final, Bridges, o mais jovem, sequer consegue conceber a dimensão das felicidades que viveu, e desfalece no carro enquanto Eastwood dirige na direção das montanhas e do céu azul, como quem o guia pelas portas do céu.
A filmografia de Cimino, assim como a de Ford – e também a de Walsh, do próprio Clint Eastwood e, até pouco tempo atrás, a de James Gray – sempre abordou as contradições humanas como algo que desperta fascínio, não desprezo ou medo. Se aceita o ser humano pelo que ele é, com todas as suas questões. Em O Ano do Dragão (1985), Cimino já estava completamente amadurecido sobre sua ideia de que precisamos compreender essas complexidades. No filme, Stanley White (Mickey Rourke no auge) é um policial polaco que precisa combater a máfia de Chinatown. No caminho, percebe que o sistema é muito mais poderoso que as boas intenções de um indivíduo. O longa começa e termina com o funeral de um chefe de máfia, e naquele momento, White só tem dois ímpetos: o primeiro é o lamento ao constatar que seu trabalho foi em vão e a roda continua girando, o que o leva a tentar encerrar a cerimônia – tentativa obviamente fracassada –, o segundo é aceitar as contradições e ser feliz com o que pode. De personagem extremamente sinofóbico, White termina abraçando o amor da repórter chinesa por quem se apaixonou ao longo do filme.
Mas isso chega ao auge mesmo é no último filme de Cimino, o já citado Na Trilha do Sol (1996). Me atrevo a dizer que considero o filme americano mais subestimado dos últimos 30 anos. No filme, o médico Michael Reynolds (Woody Harrelson) é sequestrado pelo jovem criminoso Blue (Jon Seda). Blue quer que Michael o leve até a montanha indígena onde seus antepassados viveram, por acreditar que lá há um lago capaz de curar doenças – e Blue tem câncer em estágio terminal. O que se vê em Sunchaser é o embate do jovem Cimino (o adulto Reynolds) com o Cimino adulto (o jovem Blue). Como quem assume que o caminho para a felicidade é romper com as noções de que felicidade vem pelo trabalho, pela carreira, pelo nome, e está na verdade em nosso contato com o mundo, com o que é vivo. A conclusão, com Blue se fundindo à natureza, é a minha cena de encerramento favorita de uma filmografia. A resposta veio, mais uma vez, de uma figura marginalizada, um menino que cresceu nas ruas, nas gangues e guetos de Los Angeles.
Como não citar também a filmografia de Jean-Luc Godard? Cineasta que transformou o cinema francês e mundial nos anos 60, mas que sempre que atingiu um momento de grande reconhecimento, desconstruiu tudo que estava estabelecido. Talvez o maior iconoclasta a pegar uma câmera desde que o cinema foi inventado. O diretor que explorou basicamente todos os caminhos possíveis pelo cinema, até mesmo em vídeo. Quando sentiu uma saturação, começou a falar sobre o fim da linguagem, e encerrou sua carreira com o lindo Imagem & Palavra, que captura sua atenção e, quando tem seus olhares definitivamente magnetizados, aponta as mazelas que o mundo parece ignorar no século XXI. Imagem & Palavra, inclusive, é um longa que se importa muito com a incomunicabilidade do atual momento do mundo, com momentos em que as falas do narrador sequer são traduzidas pelas legendas, por ordem do próprio Godard. Para Godard, as respostas devem ser encontradas ao darmos atenção aos marginalizados de todo o mundo, de situações como o extermínio que Israel impõe sobre a Palestina.
Alguns devem estar esperando eu falar de Era Uma Vez na América, mas como eu já citei ele em outro texto da newsletter (o primeiro), eu vou deixar para abordar em outro momento. Mas, evidentemente, um grande filme que também caberia aqui. Então aproveito para fechar com outro filme de encerramento de filmografia, e também um dos mais lindos, feito por um dos maiores artistas que atuaram no século passado: Rua da Vergonha (1956), de Kenji Mizoguchi. Mizoguchi foi um dos primeiros diretores japoneses a falar sobre os tabus de gênero e classe do Japão, e o fez indo à raiz dessa mitologia: o Japão durante a formação de sua mitologia.
Em Rua da Vergonha, acompanhamos a vida de algumas prostitutas que precisam lidar com os novos tempos conforme o Japão discute uma lei que proíbe seu ofício. Mizoguchi, que sempre teve o feminino como um de seus principais tópicos de estudo, faz um filme no qual as mulheres mais subjugadas da sociedade japonesa, as mais objetificadas e exploradas, discutem o próprio futuro. É, assim como Ford e Cimino, um artista que encerrou sua filmografia apontando para o mundo a necessidade de se ouvir quem é mais explorado e desgastado pelo mundo. Quem vive apanhando da vida sempre tem o que dizer. Quem está na base da pirâmide é quem vai trazer as melhores perguntas para resolvermos os problemas da humanidade.
Percebem como vários grandes cineastas encerram seu cinema jogando holofotes onde o mundo nos diz para ignorar? O que vejo em comum nos últimos filmes desses cineastas é que eles fazem o caminho contrário do que é regra em boa parte do cinema de hoje — mesmo os bem intencionados. As grandes produções costumeiramente sempre colocam a salvação na mão de uma figura heróica, escolhida ou até mesmo extremamente poderosa política e financeiramente. É o empresário, o herdeiro de um trono, alguém cujo destino foi forjado pelos deuses, e por aí vai. O caminho nunca é escolhido por aquele que o sistema vê como inferior, mas pelo herói que se espera de uma sociedade hipócrita e que precisa manter sua estrutura de classes muito bem definidas. Sganzerla, Ford, Cimino, Godard e Mizoguchi sempre conseguiram subverter isso em seus cinemas, e o fizeram transformando e maturando não só aos seus filmes, como a si mesmos.
Como de costume, vou encerrar deixando alguma recomendação de filme. O de hoje é brasileiro, o curta Carro de Bois, do Humberto Mauro. E fazendo a boa: além de curtinho, o filme tá disponível em ótima resolução no YouTube. Só chegar aqui. Perdoem pelo atraso e nos vemos na semana que vem!
Um puta texto o de hoje. Nem tenho o que comentar muito porque eu ainda não tive a experiência de ver o começo e o fim de um diretor desse no cinema. Mas, enfim o que eu queria falar é..... FIORE cadê o Meet da locadora, e sério cara, tem criança chorando aqui implorando pra volta da locadora. Kkkkk, brincadeiras a parte espero ansiosamente pelo a volta do Meet. Um abraço e baita texto.
Baita texto, Fiore! A associação com os filmes foi muito precisa.