Crítica | O Dia Que Te Conheci (2024), de André Novais Oliveira
A aventura de voltar a viver depois de viver para trabalhar
André Novais Oliveira gosta de filmar de longe. O diretor costuma posicionar sua câmera como se o objeto fosse um intruso no cenário, e mantém certa distância para deixar que os diálogos e movimentações dos personagens façam a narrativa se desenvolver. São raras as intervenções por movimentos da câmera. São comuns também as construções cena baseadas em um único plano, sem alternância de plano e contraplano. A ideia é tentar capturar a realidade da forma mais pura possível. A forma de Novais não só é econômica, como busca encontrar a alma das imagens que captura pelo tempo, pela decantação. Em O Dia Que Te Conheci, essa decantação passa diretamente pela percepção de realidade de seu protagonista, que para de viver em função de seu trabalho e redescobre seus sentimentos nas ruas e bares de Belo Horizonte.
Em O Dia Que Te Conheci, essa intervenção controlada do cineasta surge como quem acessa uma memória. É a história de Zeca, um bibliotecário que é demitido e, na volta para casa, pega carona com a supervisora do colégio onde trabalhava. Zeca conhece a mulher, Luísa, e se permite viver coisas novas. É um filme bastante focado nessa ideia do novo, de se aventurar e explorar, de se entregar. O bibliotecário começa o filme operando totalmente no automático, bastante acomodado com sua péssima rotina de sono. A inércia é tanta que depende até mesmo de seu amigo para levantar da cama. A demissão nem chega como surpresa. Mas a dispensa é também a oportunidade de encarar novas aventuras.
Aventura é uma palavra que se faz muito presente em O Dia Que Te Conheci. Novais Oliveira filma a história de Zeca como quem relembra algo do passado. O próprio título já sugere essa abordagem de regresso, como quem conta para a mulher amada sobre o dia em que o amor deu as caras. E aqui, o cineasta alcança alguns dos momentos mais interessantes de sua filmografia ao fazer, mais uma vez, uma obra de tão poucos planos, mas que conseguem trazer um tom de grande jornada mesmo com a economia. A caminhada apressada de Zeca até o ponto de ônibus é acompanhada por uma trilha orquestrada que insere grandiosidade, como quem concebe a grandeza de aquela não ser uma caminhada qualquer, mas a caminhada do dia em que se conhece um grande amor — ou até o dia em que se recebe a chance de um novo começo.
Mas o que, ao meu ver, torna O Dia Que Te Conheci um bom filme é a forma como ele lida com o trabalho. No começo, Zeca não é mais um indivíduo, é um corpo petrificado, que existe para cumprir sua função no mercado. Após a demissão, aos poucos, vai rompendo o piloto automático. E nesse caminho, Novais não cai na armadilha de se debruçar sobre a exploração do trabalhador de forma genérica. Os personagens já têm noção de sua condição como explorados e fazem o que podem: se recusam a se dobrar às leis do mercado. Qualquer brasileiro em 2024 tem a demissão como um dos seus maiores temores. A incerteza pelo amanhã, o medo de voltar às humilhantes buscas por novas oportunidades. O Dia Que Te Conheci aborda isso oferecendo uma outra perspectiva: em vez de ser consumido pelo trabalho, Zeca encontra a chance de se entregar a uma relação humana.
A figura responsável pela demissão de Zeca é tão explorada quanto ele, e a situação que nos é apresentada, na qual Luísa é o rosto de sua demissão, seria um prato cheio para criar um enemies to lovers ou falar sobre tensões relacionadas a posições de poder. Mas a vida é complexa e o trabalho é apenas o trabalho. Encerrado o contrato profissional, não resta “apenas” a relação humana, se abre espaço para a única coisa que importa, mergulhar no universo de novas pessoas. Quando a caminho do bar, Zeca e Luísa percorrem as ruas de Belo Horizonte totalmente vazias, não se vê sequer um corpo. É como se a dupla não estivesse caminhando pela cidade, mas saindo desse grande purgatório moedor de humanos chamado ambiente de trabalho no capitalismo tardio; estão a caminho de algo novo e desconhecido.
O trabalho já não é mais o centro da vida de Zeca. Os planos não são mais filmados e montados a serviço de sua jornada rumo à sua mesa na biblioteca de uma escola em Belo Horizonte. Agora, tudo é mistério, nunca se sabe para onde André Novais Oliveira levará o filme no próximo plano. E como os planos permanecem duradouros, decantados, sempre há tempo para que cada imagem se transforme e o cineasta se debruce sobre elas. Quase como quem, cansado de trabalhar, olha pela janela e vê um casal apaixonado atravessando a rua para ir ao boteco mais próximo.
Quando, no fim, Luísa dorme na casa de Zeca e ele vai à padaria, encontramos as melhores sequências do filme. Pela manhã, a caminho da padaria, Zeca tropeça e corta o pé, mas isso não o faz voltar para casa. O cara que antes não conseguia levantar da cama para trabalhar agora faz o que precisa mesmo quando encontra um percalço. Ao chegar na padaria, é indagado: “o de sempre?”. Dessa vez, não. A dor de viver no mundo agora é compartilhada, então há alívio. Zeca vai para casa com o café para ele e Luísa. Não importa se o relacionamento é eterno, se serão felizes para sempre, nada disso. O que importa ali é que o personagem rompeu com a mecanização e se permitiu sentir de novo. Viver para amar é muito melhor do que viver para trabalhar.
Que bela reflexão, fiquei curiosa para ver o filme. Gosto de diretores que rompem o comum para expressar profundidade. 🤗👏🏼