Coringa: Delírio a Dois alcança o anticlímax pela destruição do espetáculo
Filme de Todd Phillips não só recusa o "legado" do antecessor, como esfaqueia o mito no bucho
Ao ser lançado, o Coringa de 2019 logo se tornou o filme polêmico da vez. Apesar do bilhão na bilheteria, do Oscar para Joaquin Phoenix e do Leão de Ouro em Veneza, não tardou para o drama de Todd Phillips ser abraçado pela bolha incel/redpill, que viu o personagem como um herói, e ser duramente criticado pelo show que orquestrou ao redor da violência protagonizada pelo personagem de Phoenix. Coringa: Delírio a Dois, então, surge não só como resposta, mas também uma antítese, uma descristalização do mito ao redor do personagem.
Coringa: Delírio a Dois tem umas ideias pelas quais me interesso muito. A própria presença de Lee (a Arlequina da vez), que é bem esquisita. O filme tem dois espaços muito claros: o material e o imaginário. O material mostra Arthur na cadeia, na aula de canto e, mais a frente no filme, no tribunal. O segundo é onde as cenas musicais são concebidas, onde Arthur está de terno e maquiagem e se apresenta apenas como o Coringa. São os devaneios de uma mente quebrada. Para além de Fleck, Lee é a única figura que tem agência nesses dois espaços – o que faz o protagonista logo engatar um sentimento por ela e, depois, questionar sua lealdade. A lógica dessa divisão é bem interessante, porque em vez de falar só sobre o personagem, Phillips acaba falando um pouco sobre o culto construído ao redor dele, trazendo uma perspectiva que desmistifica o Coringa.
Esse mundo fantástico do Coringa é quase como uma rede social, uma conta fechada no Twitter. É onde ele cultua o próprio ego e tem seus delírios de violência e brutalidade – totalmente impossibilitados de serem materializados no mundo real, onde ele é apenas mais um detento sendo brutalizado. O conflito aqui, trazido principalmente por Lee, é essa ânsia por levar a fantasia para o material e enfim reestabelecer o espetáculo. E nesse aspecto, é engraçado como a Lee sempre surge de formas esquisitas em cena. Phillips chega a sugerir uma repetição da lógica da personagem de Zazie Beetz no primeiro longa, mas Lee de fato existe. Só que mesmo assim, a personagem quebra várias lógicas ao longo do filme, o que mantém o espectador confuso quanto a sua natureza – a cena em que ela se materializa na cela da solitária, por exemplo.
Com o novo filme, Phillips mostra não só não corroborar a visão que alguns fãs adquiriram do personagem após o primeiro longa, mas ser totalmente avesso a ela. Desde que Arthur começa a ir ao tribunal para o julgamento, tudo que acontece em seguida é uma destruição do mito, caco por caco. É um anticlímax total. Arthur Fleck encara seus devaneios fantasiosos como um adolescente esquisito de Discord com dificuldades sociais encara a máscara digital das redes sociais mas, em ambos os casos, a realidade é implacável. Se o espetáculo do personagem se passa em Gotham, o julgamento é demarcado pelo estado de Nova York. A cidade imaginária perece diante do estado real.
Arthur percebe que ele, como pessoa, não significa nada se não um corpo que dá vida ao palhaço. E ao abrir mão do mito, ele perde qualquer valor que poderia ter até aquele momento. Phillips não só faz o personagem destruir o próprio mito, mas garante que nem haja espaço para que algo novo surja de Fleck. Coringa 2 é não só a antítese do que se assimilou sobre o primeiro filme, mas a continuação possível ao se encarar o primeiro de forma mais madura – mesmo que tenha como custo um pouco de cinismo e autoindulgência. Quem esperava que o Coringa fosse cultuado e pintasse o sete por Gotham não vai gostar muito mesmo. Nem o próprio Coringa gostaria do filme. Quem gostaria é Arthur Fleck. E não é acidente que quando Fleck decide matar o Coringa, ele só receba ódio e desprezo. É como uma figura da internet que vive atazanando os outros, como um palhaço de circo, enfim, se comportando como uma pessoa real e descobrindo que ninguém ligava muito pra ele, mas para as palhaçadas que fazia.
Pouco interessa pra mim dizer se o filme é bom ou ruim, mas me atrai a conversa sobre a reação que o filme causou. Muitas pessoas vão ao cinema com expectativas pré-estabelecidas, que o filme não tem obrigação alguma de cumprir. Phillips, ciente disso, vai na contramão de tudo que tornou o primeiro um filme-evento. Mostra como o espetáculo não só não faz mais sentido, como nesse caso deve ser discutido e talvez destruído. O problema do Coringa novo passa longe de ser um musical, o problema é que falta a Phillips um tato para o gênero. Os guarda-chuvas e danças e demais referências são pueris demais. Havia ali potencial para se filmar algo muito menos convencional. Mas ao mesmo tempo, é interessante que esses segmentos musicais sejam pedestres, pois a visão que Arthur tem do Coringa é uma romantização estúpida e infantilizada do mundo.
Delírio a Dois é um filme que frustra, que a cada momento torna os momentos fantasiosos mais fantasiosos. Mas com isso, lança uma maldição: cada vez que a obra dobra a aposta na fantasia, ele fica também mais anticlimático. E chega em um ponto no qual nem o próprio Arthur Fleck suporta aquela situação e, enfim, se liberta de sua máscara ao perceber o quão incontornável é o mundo real. Ninguém faz um filme musical com Lady Gaga e a coloca para cantar tão mal por acidente, sabe? Evidentemente o filme nega o talento da artista justamente para corroborar o processo de sabotagem da narrativa, a recusa ao espetáculo e ao apoteótico.
De qualquer forma, é muito mais divertido ver Todd Phillips tentando algo diferente em Coringa 2, mesmo que derrapando no processo por ter ambições maiores do que seu talento, do que ver mais uma sequência que apenas recicla o que funcionou no primeiro filme. É bom, vez ou outra, uma continuação não só renegar, mas esfaquear o bucho de seu antecessor.